Engenheira de profissão, fotógrafa de paixão. Vera Marmelo tem passado os últimos 20 anos a fotografar tudo o que acontece no panorama musical, desde concertos, gravações de álbuns ou festivais de verão.
Em que ano e onde nasceste?
1984, Hospital Velho, onde é actualmente a Santa Casa da Misericórdia, no Alto Seixalinho. 12 de Dezembro de 1984.
Desde aí que tens vivido sempre no Barreiro?
Sim, moro na mesma rua desde que nasci.
Como foi a tua infância e juventude na cidade?
Desde o início deste ano tenho fotografado mais à volta da minha casa e a tentar pensar sobre os espaços que ocupo na cidade. No final do dia, acabamos por ir de um ponto x a um ponto y e só gravitas em torno de uma área muito restricta. Por causa destas fotografias, obriguei-me a pensar quais os sítios importantes em que passava mais tempo no Barreiro. Cheguei à conclusão que há três sítios muito importantes, as três escolas que frequentei no Barreiro, e tudo perto da minha casa. A maior parte do meu ensino foi feito na Escola Secundária dos Casquilhos, entre o 7º e o 12º anos. A minha vida era entre casa e a escola. Quando eu era miúda e até aos 14 anos a brincadeira era nas traseiras do prédio. Fiz parte daquela geração que eram chamada para casa através de gritos da e que pedia copos de água às vizinhas do rés do chão. Passavas o dia a andar de bicicleta numa praceta. A partir do momento em que tenho um passe, começo a ir até “lá abaixo”, ao centro, a vida muda para quem é jovem, no Barreiro. Ir “lá abaixo” significa começar a frequentar a Ilha, o primeiro sítio em que fiz vida de café e me cruzar com pessoas de outras escolas secundárias. Nesta altura também começo a sair mais a noite e acima de tudo tenho a grande memória da minha noite de finalistas do 12º ano que acabou com um só amigo no Portão. Foi com esse amigo que eu fui aos meus primeiros concertos mais à séria, primeiro concerto no Coliseu, primeira ida à Vinícola. À porta da Vinícola eu conheço o Cláudio Fernandes, que tinha os October, primeira banda que devo ter fotografado em 2002 / 2003, e continuo até hoje a fotografar. É o início de amizades marcadas por afinidades musicais. A partir de 2002 começo a ir para Lisboa, em consequência da entrada na faculdade, e mesmo saindo à noite com alguns colegas da escola, tive sempre a tendência para sair mais no Barreiro. Isto coincide com a altura em que o Rui Pedro Dâmaso e o Vitor Lopes, atuais Outra, começam a ter bandas e a organizar concertos no antigo El Matador. São estes os concertos que começo a fotografar e as imagens começam a aparecer em fóruns na internet que todos frequentávamos. O primeiro festival a que eu fui foi o Barreiro Rocks, em 2002. Mas só em 2009 é que me aproximo mais do Picos, que o organizava e começo a fotografar até ao seu fim. Na primeira edição do OUT.FEST, em 2005, conheço o Tiago Sousa. A minha proximidade ao Tiago junta-me aos seus amigos de Lisboa e consequentemente à Merzbau. Através do Tiago conheço o Sérgio Hydalgo, programador da ZDB entre 2007 e 2021, resultando na minha aproximação à sala. Também através do Tiago conheço a Rita Tomás, com quem acabo por trabalhar no Teatro Maria Matos e depois no Teatro do Bairro Alto. Portanto, mais do que espaços físicos, houve muitas pessoas que foram importantes para mim neste crescimento, e o Tiago foi uma das mais importantes.
Se vivesses só da fotografia, achas que perderias a paixão por ela?
Se me dissesses assim: no fim-de-semana que vem, vais ter de estar a trabalhar nas tuas coisas da engenharia o dia inteiro. Iria dizer-te “epá não me apetece”. Passando o dia a fotografar ou a pensar em fotografias, possivelmente chegava à noite e tu dizias-me assim “olha ‘bora fotografar aquele concerto que vai acontecer naquela cave”, eu se calhar já não ia ter muita vontade. Se calhar tive a sorte de decidir ir estudar outra coisa com uma saída profissional e estabilidade diferente da fotografia. Assim ocupo o meu tempo com isso e continuo com energia para fotografar em buracos escuros com cerveja a voar à noite. Há pessoas que têm perfil para ser freelancers, não é o meu caso. No entanto, tenho a hipótese de escolher outra profissão que não se meteu no caminho da fotografia. Vou conseguindo encaixar as coisas. A fotografia acaba também por salvar a minha vida social, estou onde os outros estão e até passo por alguém que gosta de sair a noite, mas sei que tenho outra coisa com que me entreter, tenho uma missão ali. Não sei se teria paciência de ir a dez festivais como fui em 2019, como público. Na cabeça de muita gente seres engenheiro e fotógrafo é muito incompatível. No entanto, em muitas coisas, o meu trabalho de engenheira, ajuda imenso a fotografia. Acho que é win–win.
O problema não passa também pela sustentabilidade da profissão de fotógrafo? Não estamos a caminhar para a banalização do trabalho do fotógrafo, uma vez que agora toda a gente tem uma câmara no bolso?
Fotografares só música em Portugal, e ser rentável, é muito complicado. É difícil focares-te num só campo. Nós estamos a falar de uma coisa a que chamam indústria, mas que é muito limitada. Se não forem artistas de majors que, hipoteticamente, têm budgets como deve de ser, é um universo diferente. E depois tens muita gente que quer aprender e criar porftólio a fotografar ao lado de fotojornalistas e há obviamente uma situação desconfortável que se cria. Eu compreendo os dois lados. Os mais profissionais que sentem que os mais novos estão a “minar” a profissão, e os putos que pensam que se não estiverem ali, não têm hipótese de aprender e não têm um portfolio para mostrar a um jornal. Sempre que estou num papel de formadora, o que digo aos miúdos que estão a começar, é que a melhor maneira de começarem é por baixo. Comecem com a banda local ou com o bar da cidade. Que foi o que eu comecei a fazer. Os anos que fotografei só para mim, reuni portfolio para que os outros festivais ou bandas me chamassem para eu ir trabalhar para eles. Então é lixado, porque quando é que tu marcas uma linha em que deixas de trabalhar a borla? E há sempre exceções e ninguém tem nada que ver com elas.
“Há coisas que estão no topo da minha lista, que são: passar o natal com a minha família e garantir que tenho as datas do Barreiro Rocks e do OUT.FEST livres, ainda que o Barreiro Rocks agora já não exista.”
Porque, sem saber, foram as primeiras pessoas a darem-me hipótese de fotografar. É uma conversa eterna, esta questão dos preços e do que se paga. Tento ser justa e fazer preços adequados aos clientes, mais do que preços adequados ao mercado. Uma coisa que não existe em Portugal é uma tabela de preços de fotógrafos. E ninguém fala sobre o dinheiro. Mesmo entre amigos, ninguém conta o que ganha ou deixa de ganhar. Eu não sei os preços praticados por outros fotógrafos. Passei a minha vida a ajudar as pessoas nos seus projectos em que acreditava da maneira como era capaz, que era a fotografar. Passei anos a projetar a musica do Barreiro para fora da cidade e acho que isso tem algum valor. Durante anos neguei o convites para fotografar um festival no Porto porque calhava sempre na mesma data do OUT.FEST. Quando finalmente consegui ir, acabei por ir como fotógrafa do festival. À imagem de muitos outros sítios, esta pessoa entendeu que a maneira como eu poderia comunicar o que se passava naquele sitio era a forma que lhe interessava, e eu aprendi a fazer isso no Barreiro.
O que te fascina mais, são os concertos em si ou a envolvência do público e do ambiente?
Hoje em dia é tudo. E ainda há o outro lado, que não são só os ambientes mas também os espaços em que tudo acontece. No caso do OUT.FEST, por exemplo, há esta questão de serem em diversos sítios da cidade e até os caminhos que as pessoas fazem até aos concertos são aspectos que me fascinam. Isto começou no Tremor, em 2015, em São Miguel, que é um festival que acontece em sítios inacreditáveis. Ficas completamente absorvido pelos locais onde tudo está a acontecer. As fotografias deixam de ser só os concertos ou as pessoas e passam a contextualizar aquilo tudo.
Além da fotografia ligada à música, tens outras áreas da fotografia que também gostes?
Tropecei na fotografia por causa da música. A música veio primeiro. Comecei a ir a festivais em sítios mais especiais e começo a fotografar mais paisagem e espaços por causa disso. Agora também tenho fotografado o Barreiro de uma forma mais regular. Para muita gente isto é feio e estranho mas a verdade é que são muito poucos aqueles que moram na parte bonita de uma cidade. Em Lisboa também não moram todos em Belém e saem de casa e dão de caras com o rio. Por muito feio que isto possa parecer, é a tua paisagem e é a tua casa. Para quem vê de fora, se bem conduzido, este subúrbio transforma-se. Vai lembrar-nos as características da nossa casa, a nostalgia do sítio onde crescemos. Aos olhos dos outros, isto pode ser fotogénico, e para mim o Barreiro também tem sido cada vez mais.