Pianista, compositor, músico. Tiago Sousa, 39 anos, veio ao Último Barco contar-nos como tem sido a sua vida na música, o seu trabalho associativo e como devemos aprender a dar valor a alguns bens essenciais que, muitas vezes, damos como garantidos e que, um dia, nos poderão fazer falta.
Nasceste em Lisboa, e só mais tarde chegaste ao Barreiro, com 18 anos. Como foi o percurso até cá?
Eu nasci em Lisboa, na Estefânia, mas vivi em Sintra quando era mais novo e depois também vivi na Ajuda. Eu cheguei ao Barreiro em 1998.
Como é que acabaste a viver no Barreiro?
Eu passei a minha infância toda em Sintra, muito antes de ser um local turístico. Depois passei os anos 90 na Ajuda, que é um sítio que do ponto de vista urbanístico não é assim tão diferente do Barreiro, por isso a adaptação ao Barreiro até foi simples. Quando eu cheguei cá fiz uma editora que era a Merzebau, no início dos anos 2000. Na altura já havia uma editora no Barreiro, que era a Searching Records, do Rui Dâmaso e do Vitor Lopes. Eles editavam música mais independente e o Vitor enviou-me um e-mail assim que cheguei ao Barreiro. Eu não conhecia cá ninguém mas isso motivou-me e acabei por ir ao primeiro evento que seria mais tarde o OUT.FEST. A partir daí, foi tudo muito natural. Comecei a dar-me com a comunidade artística da cidade e foi fácil enturmar-me. Senti um ambiente muito familiar.
Como correu a adaptação, enquanto pianista, aqui no Barreiro?
Foi a tocar, a fazer bandas. Eu acabei por mudar com a cidade. Percebi que o sítio onde moras tem uma grande influência na tua vida. O Barreiro inspira-me bastante do ponto de vista estético. Pelo seu lado sombrio e até algo decadente. Eu acho a cidade bastante inspiradora, principalmente pelas pessoas que cá vivem. E isso marca uma pessoa, transforma-a.
Tu deste o teu primeiro concerto em 2006, na Chapelaria, que é um local que já nem existe. Passados 15 anos, e depois de tantos concertos, como é que vês o Barreiro como um palco, hoje em dia?
Eu acho que tenho conseguido encontrar as oportunidades. Já toquei na Biblioteca, no Cineteatro e noutros sítios interessantes da cidade. Eu sinto que a cidade me tem dado coisas, e eu também dou coisas à cidade. Claro que é importante que os espaços devam ser ocupados pelas pessoas, e o Barreiro tem um movimento associativo muito forte. Ainda existe aqui uma certa tradição de apoio mútuo. No entanto, os executivos também deviam ter mais a preocupação de promover estes eventos porque, infelizmente, esta é uma realidade que está em decadência. Os espaços vão fechado, e isso é preocupante. O usufruto do espaço público é um direito que nos é muito vedado, do ponto de vista urbanístico. Há sempre coisas que podemos fazer para que as coisas possam avançar. Felizmente temos agora alguns espaços assim agora, como a ADAO, ou a Mula, de que eu faço parte. Mas é preciso que nós saibamos que esta cidade pode ter condições para juntar uma série de malta que dificuldade em pagar rendas altas em Lisboa e não se importa de viver numa cidade completamente diferente. E porque não pensar se não nos interessa isso? Pensar numa cidade que seja mais cosmopolita, que assuma a sua diversidade e multiplicidade.
Ser cada vez menos um dormitório.
Exatamente. Ser uma cidade em que as pessoas que vivem nela, habitem nela. Que é algo que, infelizmente, por políticas que estão muito além daquilo que acontece no Barreiro, e que definem que o subúrbio é um local onde as pessoas só venham dormir, faz com que as cidades percam aquilo que é mais essencial, que são as pessoas. Se as pessoas habitarem mais esta cidade, ela vai tem um aspecto completamente diferente. E é preciso criar esse dinamismo. Acho que é importante pensar nisto, e pensar colectivamente.
Falaste da Cooperativa Mula, onde colaboras activamente. Qual o trabalho que esta cooperativa desenvolve no Barreiro?
É muito o espírito de “Do It Yourself”. É como ter uma banda. Se tens uma banda, tu queres tocar e ocupar espaços a tocar. E foi um pouco nesse sentido que a Mula foi surgindo. Primeiro foi ocupando um terreno baldio na cidade, que em tempos já foi um terreno agrícola. Começamos com a horta comunitária, depois de algumas reuniões na Estátua, com aquele esquema de microfone aberto, depois de um apelo que fizemos e apareceram muitas pessoas. Começamos com a horta e depois percebemos que estava um espaço vazio ali perto, que já tinha sido uma taberna e uma mercearia. Toda esta ligação e preocupação que nós temos de utilizar a cidade para plantar comida não é nenhum erotismo, é algo bastante pratico. É uma questão de autonomia alimentar. Teres fontes de comida perto de ti, é uma questão de sobrevivência bastante importante. E começamos com os legumes e este espaço, por ser uma antiga mercearia, ainda faz mais sentido. A nossa ideia é ir alimentando a cidade e tentar manter a chama viva.
A cooperativa já cresceu e já está ao dispor da população através de uma série de serviços de alimentação e compra de mercearias. Como tem sido este crescimento?
Pensar no trabalho e na organização do trabalho, é uma das maiores urgências que temos. Como vamos deixar de depender de decisões produtivas que são tomadas sem a nossa escolha? Nós só somos chamados para consumir, mas ninguém participa na produção das empresas. Como se produz, com que cuidados, com que ética, essas questões não são postas ao trabalhador. Nós acreditamos que esse paradigma pode mudar. E é algo que contribui para o bem-estar comunitário. Estas redes de interajuda e cooperação são o que deverá ficar para fazer frente ao futuro, que é sempre imprevisível.
Voltando um pouco à música. Lançaste dois álbuns num espaço de seis meses. Este período mais atípico em que vivemos serviu de inspiração para algum destes trabalhos?
Na altura em que a pandemia estalou, nós tivemos vontade de agir, e criamos um esquema de cantina solidária. Isto não foi nenhuma espécie de caridade, de querer ajudar os outros de uma forma distante, pelo contrário. Por exemplo, eu sobrevivo a dar aulas, e neste contexto eu não o podia fazer. Ou seja, iria ter dificuldades e a alimentação é fundamental para sobrevivermos. Foi uma necessidade de várias pessoas. Se isto está a acontecer, bora lá criar as condições para alimentar a cidade. Não é tanto pelo estar mais tempo em casa, até porque eu sempre passei muito tempo em casa. Não tive esse choque. Por outro lado, um disco já estava gravado desde 2018, o Angst, que ainda não tinha saído por questões de agenda da editora, e outro foi feito no final do Verão, e saiu um mês depois. Quando o processo criativo é um bocado mastigado, torna-se um bocado destrutivo, e é importante ter esta dualidade.
“Eu gosto de viver com alguma solitude, mas também preciso de fazer parte de um colectivo.”
O teu processo de ensino de piano não é o convencional de um conservatório. Sempre foste um autodidata, ou procuraste aprender pelos métodos mais convencionais?
O meu processo de aprendizagem foi bastante individual. Há um certo autodidatismo que eu tento cultivar. No entanto, eu aprendi a tocar piano com a minha avó, ainda muito novo. Tive um contacto bastante prematuro com a música. Mas todo o processo académico que poderia ter seguido, não está muito presente na minha forma de fazer as coisas. Eu gosto de ir aprendendo com a práctica. Eu tenho interesse em vários géneros músicais, desde a mais erudita à contemporânea.
Não sentiste necessidade de ir para o conservatório e ter uma formação musical mais clássica?
Essa necessidade veio depois, por causa da práctica. Se me quisessem convencer que eu teria de me sentar numa mesa de uma sala de aulas para estudar harmonias, secalhar tinha sido muito difícil de me convencerem. Claro que depois tive curiosidade sobre isto, mas não foi isso que me trouxe aqui. Eu sei que este método leva-te a cometer mais erros, mas no fim do dia, entre cometer erros e encontrar-me a mim próprio ou ter um método mais clássico, eu prefiro cometer erros. O meu processo de compor já passou por diferentes fases. E é isso que eu vou tentando partilhar com as outras pessoas. Eu não me sinto bem o típico professor, eu não tenho um nível de academismo desse, eu falo das coisas à minha maneria e partilhando com os meus alunos. No fundo, hoje em dia, sinto que tenho um conhecimento mais funcional sobre a música. Consigo organizar a música de uma forma mais consciente e isso leva-me a ter resultados um bocado diferentes. Isso é bastante entusiasmante para mim.
Achas que essa forma mais tradicional de ensinar música pode ser menos cativante e pode acabar por afastar alunos, principalmente os mais jovens?
Sim, sem dúvida. Eu acho que há um grande problema com o ensino da música, e acaba por ser um reflexo da sociedade. Nós habituamo-nos a aprender a música sobre uma determinada tradição europeia e que, de todo, pode sintetizar a música enquanto fenómeno da humanidade. A música é das coisas mais prevalecentes que nós podemos encontrar no mundo. E há muitas formas de olhar para a música. Basta pensarmos em musica indiana, asiática ou nas sonoridades africanas. E é importante não perder isso de vista. Claro que a componente dos acordes e escalas é importante entender para conseguirmos chegar à essência da música e sermos mais eloquentes com o que temos para dizer. Mas, ao mesmo tempo, há qualquer coisa em cada pessoa que é insubstituível. E é importante continuar a pesquisar formas de ensinar e de aprender. Se derem música popular portuguesa a uma criança para ela aprender, e se ela não tiver interesse ou não for cativada, claro que ela vai sentir uma certa repulsa. Mas não é a enfiar isso pela goela abaixo que ela vai ficar a gostar.
Que novos projectos tens em mente para os próximos tempos?
Eu tenho alguma dificuldade com essa questão. Eu já percebi que se fizer muitos projectos para o futuro, eles acabam por não acontecer. Eu vou continuar a compor e a tocar, e vão surgindo coisas. Concertos ou discos. Agora não tenho assim nada mesmo na calha.
Tens saudades de tocar ao vivo e da presença das pessoas?
Por mais irónico que pareça, faz-me falta ouvir um instrumento, um em que eu não esteja a tocar. Um concerto é algo tão fundamental para mim que seria já bastante bom eu ver alguém tocar. E isto leva-nos à dimensão da importância do concerto em que dás mas também recebes. Faz-me muita falta enquanto ouvinte, ouvir música ao vivo. É mesmo algo fundamental, podermos partilhar momentos únicos. Eu tenho o privilégio de poder fazer isso para as outras pessoas. Mas continuo a achar que o maior privilégio que tenho é o de poder ouvir músicos a tocar, poder partilhar essa vivencia. E isso, faz-me muita falta.
Fotografia: Vera Marmelo