Fundou a OUT.RA em 2009, depois de alguns anos à frente da editora Searching Records. O OUT.FEST é um reflexo desse trabalho, festival que ocorre desde 2004 no Barreiro. O Último Barco conversou com o Rui, que se dedica exclusivamente à programação cultural na cidade.
Nasceste no Barreiro em 1980. Há 40 anos que vives cá?
Sim, tirando um período de quatro anos que vivi em Lisboa, mas vinha cá practicamente todos os dias.
E como foi a tua infância na cidade?
Eu vivi sempre entre o centro do Barreiro, onde vivo agora, e os Casquilhos. Os meus avós viviam aqui no centro, na rua do Be Jazz e, até aos 13 anos vivia com eles durante a semana e só aos fim-de-semanas ia para a casa dos meus pais, nos Casquilhos. Por isso, fiz a escola primária na Escola Nº2, depois na Escola Mendonça Furtado e depois fiz até ao 9ºano na Escola Alfredo da Silva. Com 13 anos decidi autonomizar-me um bocado e fui para a casa dos meus pais, e acabei por ir para os Casquilhos, até acabar o 12ºano.
Percorreste uma série de escolas diferentes.
Sim, e são realidades um pouco diferentes, até socialmente. Mas acho que foi interessante, porque não fiquei só com a perspectiva do centro do Barreiro. Também não tenho aquela ideia de quem passa os dias a dizer “vamos lá abaixo” como uma referência de quem vem até ao centro. Tenho uma visão abrangente desde cá de baixo até lá acima.
Na faculdade estudaste Filosofia. Terminaste o curso?
Sim, mas só o terminei já com 33 anos. Eu desisti ao fim de um ano ou dois, e depois quando vivi em Lisboa é que decidi ir acabar o curso. Já numa perspectiva de só o fazer por autorrecriação, filosofia nunca foi uma escolha que me pudesse dar um emprego ou uma carreira.
Quando decidiste ir para este curso, querias trabalhar nesta área ou ganhar conhecimento?
Tu tens 17 anos quando és obrigado a tomar escolhas que são decisivas. E nessa idade não fazia a mínima ideia do que queria fazer, nem estudar. Eu nos Casquilhos estive no agrupamento de Ciências, mas olhando para trás se calhar devia ter logo escolhido Línguas, e apesar de ser bom aluno, as minhas melhores notas eram a Português, Inglês e Filosofia. Quando estava a decidir as candidaturas para a universidade optei por Filosofia. Não me estava a ver em Química, Medicina ou Física, que era aquilo que eu estudava. Decidi então fazer provas de Filosofia só para ver se dava, e consegui entrar. Tinha gostado imenso de ter Filosofia no 10º e no 11º ano. Mas não houve nenhuma grande razão por detrás. Foi o que me pareceu interessante na altura versus aquilo que não me parecia de todo interessante que era seguir Ciências.
Essa interrupção no curso dá-se quando começas a interessar-te mais por “viver na música”?
Eu acho que tem mais a ver com o querer viver em geral. A minha paixão pela música existe desde que eu me conheço. Eu lembro-me de andar na Alfredo da Silva, aí no 8º ano, e já comprava discos. Acho que era o único da minha turma que comprava discos. Já passava os dias a ler revistas, críticas nos jornais, ouvir rádio. Passava os dias agarrado à rádio, a pôr cassetes na aparelhagem e tentar gravar as músicas que gostava. Gravar coisas em VHS e rever centenas de vezes. Portanto, para aí desde os meus 10 anos que já me interessava muito por música. Essa fase de entrar na faculdade tem mais que ver com descobrir a vida em geral, descobrir pessoas diferentes e não querer pensar em estudar. Sempre fui bastante certinho, bem comportado e um óptimo aluno, e se calhar chegou a altura em que me fazia falta não ser essa pessoa e procurar saber quem é que eu era. Acho que toda a gente tem uma fase de descoberta, e foi isso que me aconteceu nessa altura. Por consequência, comecei a fazer música e a tocar com os Frango, que já incluía na altura o Vítor Lopes, e começamos a dar alguns concertos. Depois em 2004 começamos uma editora de CD-R e o OUT.FEST. Depois andei alguns anos a dedicar-me a estas paixões, apesar de não ser profissionalmente. Nada disso era possível nessa altura. Só mais perto dos 30 anos é que percebi que era algo que eu poderia fazer realmente na vida.
Neste momento a tua profissão é seres programador cultural.
Sim, o meu trabalho é na OUT.RA a tempo inteiro. Desde a gestão administrativa e financeira, à programação de concertos, do festival OUT.FEST, alguns projectos europeus que temos, a comunicação, fazer candidaturas ou relatórios. Não tudo, porque tenho mais colegas, mas um pouco de tudo o que há para fazer.
O teu actual trabalho de programador cultural resulta de uma necessidade que foi surgindo com o crescimento do OUT.FEST ou é algo que sempre quiseste fazer?
Não, muita pouca coisa foi pensada até talvez estar já a acontecer. Na verdade, creio que o sonho, que acho que todos temos, esteve sempre mais ligado ao ser músico. Desde que comecei a interessar-me por música sempre sonhei em ser músico, mas também nunca fiz grande coisa por isso. Nunca aprendi um instrumento quando era mais novo, nem sei bem porque razão. Quando comecei a fazer música foi de uma forma completamente autodidata, o que foi natural dado o tipo de música que me interessava fazer. O que acontece é que por volta de 2009 comecei a ceder mais para o outro lado, onde sempre estive também. Um lado mais melómano. Para além de gostar da ideia de ser músico, a minha paixão pela música sempre esteve ligada ao descobrir coisas novas, ao colecionar CDs, discos, cassetes ou ler muita coisa em revistas e jornais. Por essa altura apercebi-me que não ia dar para fazer tudo e que tinha de tentar em concentrar-me em fazer pelo menos uma dessas coisas. Nessa altura começou a ser possível não só pensar no festival mas também numa identidade e em como poderíamos transformar o quotidiano da cidade, criando novos projectos que nos interessassem. Mas não foi nada muito racional, foi algo natural, dedicar-me mais a este lado.
Como vês o actual panorama cultural no Barreiro?
Vejo de uma forma que me agrada muito, sinceramente. Se me tivesses feito essa pergunta há seis ou sete anos atrás, eu via de uma forma algo desoladora.
“Eu cresci no Barreiro como uma cidade na qual essa paixão que eu tinha pela música podia ser totalmente explorada e vivida”
Numa fase em que eu andava mais a descobrir música e queria comprar CDs, só do túnel para cá, havia cinco ou seis lojas, em simultâneo, que vendiam discos. Que é algo absolutamente surreal para quem não viveu esses tempos. Tínhamos uma vida noctura, que também já não existe, mas que estava muito ligada ao amor pela música. A Vinícola, claro, com o heavy metal, mas também a Chapelaria, ou outros sítios. Eu tinha a noção que já havia malta, mais velha que eu, que fazia concertos ou editava discos. Tinha muitos amigos que tinham bandas. Ou seja, esse crescer com a paixão da música no Barreiro foi algo muito natural, nunca tive necessidade de sair daqui para poder fomentar essa paixão. Pelo contrário , essa paixão crescia porque eu estava num meio onde as coisas aconteciam. Isso foi muito importante. Curiosamente, no ano em que o OUT.FEST começou, em 2004, era para ter acontecido no Espaço B, no El Matador, e duas semanas antes da data do festival, o espaço foi fechado. Até hoje. Então em duas semanas tivemos de passar o festival para o Penicheiros, também foi um bom exemplo da resiliência e capacidade de improvisação que é preciso ter para fazer as coisas aqui, mas isso é normal. Mas a partir de 2004 essa movida nocturna no Barreiro começou a decair. Até que lá para 2010, desapareceu completamente. Depois essa fase, até talvez 2015, foi muito negra porque deixámos de ter esses pontos de encontro e tenho uma perceção que houve assim um êxodo geracional durante uma série de anos. Nós perdemos duas ou três gerações de miúdos que chegaram a uma idade de adolescência e já não viam à sua volta aquilo que nós víamos quando tínhamos essa idade. Essa tal comunidade e espaços onde nos encontrar. Durante muito tempo andámos a queixar-nos e a perguntar onde andam os miúdos do Barreiro e não encontrávamos. Entretanto a situação já mudou bastante e o aparecimento da ADAO deve ter sido essencial para se descobrir esse sítio de encontro. E agora já se volta a ver malta nova onde eu revejo bastante aquele espírito de querer fazer coisas e que não é preciso sair do Barreiro para as fazer. É mais fácil agora eles chegarem às gerações mais velhas, como a minha. Portanto, o panorama actual é muito interessante no que diz respeito a uma renovação geracional. Temos miúdos novos a ensinarem-nos coisas de valor, e isso faz nos acreditar que quando tiverem 40 anos ainda vão estar por aqui a fazer coisas e isso é que é realmente importante.
O haver mais espaços faz com que haja mais projectos.
Sim, eu acho que havia muito poucas pessoas que se encontrassem. No meu tempo, os encontros eram mais naturais. E esses espaços enquanto vida nocturna já não existem muito. Para os tempos que vivemos, o facto da ADAO existir e ser um espaço onde as pessoas se podem cruzar quando há eventos, veio possibilitar uma nova forma de encontro, que antes não existia.
Achas que fazem falta mais espaços ou é necessário revitalizar os que já existem e não são tão utilizados?
Claro que faz falta. Eu tenho a pretensão de reparar a questão da vida nocturna e dos bares. Eu gostava que algum dia voltasse a acontecer um outro espaço como o Barreiro Velho onde se encontravam pessoas. Mas hoje em dia estamos numa fase em que as pessoas se encontram mais à volta dos eventos. E sim, fazem falta mais espaços com eventos culturais no Barreiro. De todo o tipo de dimensões. Eu acredito que uma das grandes hipóteses do Barreiro daqui por 20 anos não ser só mais um subúrbio indiferenciado de Lisboa, é precisamente pela afirmação da especificidade cultural que nós sempre tivemos. Da música em particular. Não é a única coisa que existe e que é bem feita, mas é talvez a que dá mais visibilidade à cidade. O Barreiro deveria claramente assumir um dos rumos de ser uma cidade atractiva para quem está no mundo das artes. Já temos aí muitos miúdos novos que escolheram vir para o Barreiro, porque foram obrigados a sair de Lisboa pela questão imobiliária, mas que viram na cidade algo de atractivo. E acho que é importante tornar esta cidade atractiva para quem tem interesse pela música e pelas artes, para não ser só mais um dormitório. E aí é essencial que haja mais espaços para apresentação.
Eventos que já deram a conhecer a cidade, como o OUT.FEST, não deviam ser ainda maiores e com maior eco?
Sim, claro. Nós, por um lado, estamos satisfeitos porque a sensação é de que cada ano que passa conseguimos um bocadinho mais desses ecos e impacto. Mas estamos claramente muito longe de um tecto. É totalmente possível que este festival se torna ainda maior, sem deixar de ser aquilo que é. É um festival para vários nichos mas nunca será um festival para 30 mil pessoas. Neste momento, temos entre 2 a 3 mil pessoas por edição e acreditamos que sem grande dificuldade podemos ter 5 ou 6 mil pessoas. Isto em termos de pessoas, porque depois também há um reflexo de notoriedade e de haver mais gente que vai conhecendo o festival ou que ouviu falar. O que faz falta é, sobretudo, meios financeiros. Nós estamos aqui há tempo suficiente para perceber que por muitas omeletes que já tenham sido feitas sem ovos, a dado ponto é necessário que haja alguma coisa para as coisas poderem crescer. Nós sabemos o que precisamos e é uma questão de todos os anos tentar ter mais meios. Além disso, por muito que eu ache que a dimensão do festival é importante, o que muda realmente as cidades é o quotidiano, são as vivências. E isso é que tem mesmo de melhorar, e tem de haver uma oferta regular. Mesmo que não seja de grande dimensão, mas regular. Isso é que é realmente importante.
Achas que o Barreiro pode beneficiar com o aumento do teletrabalho?
Totalmente. O Barreiro tem de ser uma cidade capaz de atrair pessoas das áreas criativas. E já temos muita gente que vem para cá. Não são só músicos, podem ser freelancers, designers. Do que já era possível fazer remotamente, o Barreiro já se ia tornando uma cidade interessante para essas pessoas. Não sendo artistas ou criadores, são pessoas que são público das artes. Se isso já acontecia antes da pandemia, agora ainda acontece mais.
Voltando ao OUT.FEST e sobre a questão dos apoios financeiros. São poucas as grandes empresas na cidade que tenham capacidade para conceder apoios ou patrocínios de grande valor. Como é que se atrai estas empresas para investir num festival que é, na verdade, muito relevante para a cidade?
As coisas estão todas ligadas. O Barreiro já não é uma cidade onde haja um grande empregador. Portanto, não foi algo que se subtraiu da nossa visão. Nunca fomos atrás da grande empresa que não existe.
“A impressão que temos, é que é muito difícil convencer alguém a investir no Barreiro. Se já é difícil convencer uma empresa a investir num evento cultural mais de nicho, em Lisboa, Porto ou Braga, sendo no Barreiro ainda é mais difícil, para não dizer impossível.”
Mas este trabalho em prol da imagem da cidade deve contribuir também para que haja investimento no Barreiro. É preciso fixar pessoas e atrair mais. Não é difícil o Barreiro criar condições para atrair investidores a olhar para aqui. Mas também é importante que o município, quando tem empresas interessadas em alguma coisa no Barreiro, e temos visto isso com o actual ou anterior executivo, explorem as tais contrapartidas em obras, que vão sendo feitas. Tem sido através de rotundas ou estradas, e é perfeitamente legítimo e interessante. Mas também seria interessante que uma pequeníssima percentagem do valor dessa contrapartida pudesse reverter para uma bolsa cultural para a cidade, por exemplo. Agora, as coisas têm de ter um rumo e não creio que seja difícil tentar dar essa imagem de cidade cultural ao Barreiro.
Falando em bolsas culturais, a OUT.RA tem uma bolsa cultural anual há cerca de seis anos, sendo que nesta última edição foi alargada também aos concelhos da Moita e Seixal. Sentiram que havia interessados fora do Barreiro ou foi uma tentativa de dar oportunidade aos concelhos vizinhos?
Foram várias coisas. Já tínhamos tido interessados em anos anteriores e que não eram do Barreiro. Mas também somos nós, à nossa maneira, a tentar projetar aqui um Grande Barreiro, que também atrai quem está ao lado. É uma forma de conhecer artistas emergentes, dentro e fora do Barreiro, e como temos uma actividade que se procura estender mais ao longo do ano, também nos importa ter ferramentas diferentes de quem está perto de nós. Acho que também temos a ganhar com isso. Foi um primeiro passo, não quer dizer que não alarguemos mais de futuro. O Barreiro tem cinco concelhos vizinhos, é muito. Mas é quase essa ideia do Grande Barreiro que muitas vezes referenciamos, quando estamos a incluir a Baixa da Banheira ou o Vale da Amoreira, tal como o Barreiro faz parte da Grande Lisboa. É tentar assumirmo-nos como um centro aqui na Margem Sul, mas é algo simbólico.
A OUT.RA desenvolveu também o projecto Cidade Som. Como surgiu esta ideia?
Este projecto começou por ser chamado Sons do Arco Ribeirinho Sul, em 2011. Na altura teve a ver com o nosso interesse pela práctica de gravações sonoras e documentação sonora. Primeiro, pelo amor pela cidade, que é uma constante de todo o nosso trabalho. Documentar, em termos de sons, as diferentes realidades do Barreiro, para a posteridade e para existir esse arquivo. Ao mesmo tempo, também para alimentar os músicos que criam cada vez mais a partir deste tipo de gravações. O projecto Sons do Arco Ribeirnho Sul este activo entre 2011 e 2014 e deu origem a um filme, uma exposição e vários concertos. O Cidade Som começou por ser um nome que agregava esse projecto e novos que surgissem dentro da documentação sonora do Barreiro. É algo que está em constante desenvolvimento. Neste momento o site da Cidade Som tem o arquivo do Sons do Arco Ribeirinho Sul, tem um arquivo com as gravações que fizemos em 2017 a convite do município e a propósito dos 80 anos da Água no Barreiro, e há uma série de documentos variados que nos vão chegando. Temos alguns sons que foram gravados o ano passado, e o site está sempre a receber novas gravações e documentos. Acho que é importante esta documentação histórica.
Voltando ao OUT.FEST. Qual o artista ou banda que se dissessem ao Rui de 16 anos que viria a tocar no Barreiro, dirias que seria practicamente impossível?
De 15 ou 16 anos não sei porque o que eu ouvia com essa idade não era material para vir ao OUT.FEST. Mas aí aos 19 ou 20 anos, se calhar se me dissessem que tinha estado cá o Damo Suzuki, dos Can, os Faust ou os The Fall, seria bastante incrível e ia parecer mentira. Parecia mentira mesmo quando estava a acontecer. No dia em que eu conheci o Damo Suzuki na Galeria Municipal, que já não existe, foi surreal. Foi das primeiras coisas de música mais fora que eu descobri quando comecei a descobrir música diferente, e estava ali à minha frente a pedir-me um cigarro, foi algo interessante. Ou o Mark E. Smith dos The Fall ir jantar à Tasca da Galega também é qualquer coisa. Os Faust passarem uma manhã na garagem do pai do Vítor à procura de material para fazerem barulho para o concerto deles também fica guardado.
Ainda tens muitos nomes que gostavas de trazer ao Barreiro?
Sim, apesar de alguns desses heróis mais velhos irem desaparecendo entre nós. O próprio Mark E. Smith já não está cá, faleceu dois anos depois de vir ao OUT.FEST. Há uns que seriam demasiados caros para a nossa capacidade mas sinceramente essa fase de querer trazer os heróis está já um pouco ultrapassada. Eu continuo a descobrir música nova todos os dias e a ter essa paixão completamente acesa. É criar novos heróis para trazer à cidade. E acho que tem de ser assim, pensar cada vez menos nas obras do passado. É importante é ter um filtro para distinguir o que é realmente novo. Mas isso já é um trabalho de programador, que é algo que também faço com muito prazer.
Fotografias: Vera Marmelo