OUT.FEST 2024: “Se conseguimos fazer vinte anos disto, deixa ver se conseguimos fazer outros tantos”

Começa hoje a vigésima edição do OUT.FEST (Festival Internacional de Música Exploratória do Barreiro). Vai decorrer de 2 a 6 de Outubro, percorrendo vários espaços da cidade e acolhendo um grande leque de artistas, oriundos de várias geografias. A propósito deste marco, que são os vinte anos deste festival, o Último Barco esteve à conversa com Rui Dâmaso e Vítor Lopes, fundadores e organizadores do festival.

Como tem corrido a produção e planeamento desta edição do festival? Sentiram uma “pressão” maior por ser a  vigésima edição?

Rui Dâmaso: Do ponto de vista da programação acho que não houve nenhum cuidado particular. Tentámos sempre ter a maior abertura possível ao tipo de música que gostamos e que achamos que faz sentido trazer ao festival. Não fomos atrás de nada bombástico só por ser a celebração dos vinte anos. Talvez o facto de explorarmos o domingo, que já não faziamos há muito tempo, e nunca com esta dimensã, pode já ter mais que ver com a ideia da celebração. E, claro, a exposição que está patente aqui no Mercado 1º de Maio, que só existe porque é o 20º aniversário, porque achámos que era importante ter algo assim. É também uma forma de relembrar a importância que o trabalho da Vera tem tido, não desde o primeiro ano, mas do 3º ou do 4º.Por fim, o livro, que foi algo que acho que já estava definido há muito tempo que queríamos fazer. Nós todos crescemos a ler livros e é uma coisa importante para nós ainda. E, pessoalmente, acho que é uma maneira de nós escrevermos o nosso cantinho da história. Quando colocas as coisas num objecto como o livro, também se procura garantir aqui uma pequena imortalidade destes primeiros vinte anos. E sim, ele também deu algum trabalho extra, mas eu acho que depois o festival em si, que vão ser os 5 dias do festival, não vai fugir assim tanto ou quase nada daquilo que tem sido a nossa linha nos últimos anos.

Cartaz deste ano, com o design de José Mendes.

E pegando precisamente no livro, ao fazerem-no e revisitarem todo este percurso, quando o festival começou, achavam que vinte anos depois iria ser isto? Estão satisfeitos com aquilo que foram estes vinte anos?

Vitor: Pela minha parte, acho que nunca pensei muito nisso. Quer dizer, eu penso, mas é sempre na forma de pergunta, não é? Durante quanto tempo é que vamos conseguir fazer isto? Vamos ser um festival daqueles que duram muito tempo? Na verdade, até é uma coisa que fomos construindo.

Rui: Eu nunca pensei, eu acho… Pelo menos, nunca nos 3 ou 4 primeiros anos, acho que nem pensei no que estávamos a fazer. Estávamos só a fazer, não foi certamente uma coisa que tivesse começado com um plano, sequer tirando o vamos fazer um festival. Porque estamos com vontade de fazê-lo e andam aí bandas interessantes e nós também tocamos e queremos conhecer outras bandas. Diria que, pela minha parte, só talvez depois de fundarmos a associação, que já foi no 5º ou 6º OUT.FEST,  é que se começou a pensar  não só no que é que se estava a fazer, mas o que é que se podia sonhar em fazer.  Acho que o modo foi sempre esse todos os anos. Ainda há coisas que gostávamos de fazer, ainda há coisas que gostávamos que o festival fosse e não dá para ser ainda de alguma maneira. Eu acho que ainda estou um bocado também nessa parte. Obviamente que é diferente, vinte anos é quase metade da minha vida. É impossível isto não ser visto de maneira diferente agora do que era até há 10 anos atrás, quanto mais há vinte. O que eu posso dizer é que ainda há ideias para fazer muita coisa ou para fazer coisas diferentes. Mas acho que nunca fizemos planos a longo prazo.

E sentem pressão ou mais responsabilidade agora, uma vez que o festival também já é mais conhecido, tem mais público, tende a estar sempre esgotado, tem cada vez mais reconhecimento lá fora?

Vitor: Do ponto de vista organizacional, enquanto uma entidade que acolhe artistas, e que acolhe o público, e que chama pessoas para trabalhar, eu diria que sim, que sentimos mais a responsabilidade, ou cada vez sentimos mais responsabilidade em fazer as coisas bem. Cuidar bem dos artistas, proporcionar-lhes boas condições para apresentar a música, a mesma coisa para o público. Isto a nível da produção, organização, logística e da comunicação, tudo aquilo que implica fazer uma coisa para as pessoas também.  Porque nós somos organizadores neste contexto, mas também somos público de outros eventos. Também fomos ou meio que somos artistas, mas já experienciámos as coisas desse ponto de vista. Sabemos o que é que é fixe, a nível de condições e de conforto.

Rui: E tendo em conta que nós somos um festival que trabalha muito com o incerto. Ou seja, nós temos que trabalhar com salas que têm condições muito diferentes entre si, e é um desafio permanente essa parte. Há sempre maneira de as tornar mais funcionais ou mais acolhedoras durante os concertos que fazemos lá. Vai ser um bocado sempre assim. Pelo menos, até um dia termos uma morada fixa, se esse dia alguma vez chegar, não faço ideia sequer.

Vitor: Eu acho que devemos ser bons anfitriões, enquanto organização, enquanto festival, mas também enquanto pessoas da cidade. E por esse lado também tentamos ter um bocado de cuidado para que as pessoas se sintam bem acolhidas no Barreiro. Mostrar o lado bom da cidade.

Rui: Sim, por exemplo, para nós fazer um festival é programar as bandas, mas isso é mesmo só uma parte, porque há tantas outras. Quer dizer, desde onde é que vamos jantar com os artistas, o que é que os aconselhamos a visitar no seu tempo livre,  aqui no Barreiro, coisas assim, não é? E é uma coisa a que nós, se calhar, antes não estávamos tão atentos, ou não tínhamos a possibilidade de dedicar tanto tempo a isso, e agora passamos um bocado mais tempo a tentar aprimorar, ano após ano, aquilo que é a experiência do Barreiro para quem vem cá, dentro daquilo que nos é possível controlar ou sugerir. Mas, de resto, do ponto de vista da programação, eu não sinto particular pressão, porque eu acho que aí, acho que também tudo depende de nós continuarmos a ser bons ouvintes e interessados, e não deixar de nutrir a nossa sensibilidade, acho eu, porque, no fundo, o que programamos, acaba por estar muito ligado àquilo que nós achamos importante. Que gostamos e que é importante mostrar. Tenho um bocadinho da confiança de que, desde que nós mantenhamos os ouvidos ativos e interessados, e sempre com interesse em perceber o que é que se está a fazer, ou o que é que se fez e não se conhecia, lá para trás, eu acho que aquilo que é a identidade musical na programação do OUT.FEST, em princípio, está assegurado, creio eu. A música que nós ouvimos, ou a música que nós programamos agora, não é exatamente a mesma que de há 10 anos atrás, porque mostra que nós até cá também evoluímos enquanto ouvintes, portanto, à partida, isso nunca foi uma coisa que teve de ser assim tão consciente quanto isso, foi acontecendo. No máximo, posso sentir a pressão de manter uma pessoa interessada, mas até agora ainda não foi necessário. Acho que continua a acontecer naturalmente um bocado por aí. Mas pode acontecer que um dia nós sintamos que estamos a perder um bocado o toque com alguma contemporaneidade que possa existir, que estejamos cegos para algum ângulo do que a música está a ser ou não. Mas aí também confiamos que as pessoas nos vão dizer isso, porque acho que a gente também tem tido a sorte de ter pessoas, ou que são amigos, ou que são público, ou que são as duas coisas, que também não se coíbem de dar a sua opinião. E acho que isso é uma coisa que tem sido importante, tem feito também parte da identidade do festival. Eu acho que uma grande parte das pessoas que vêm ao festival sentem que se nos disserem alguma coisa nós vamos ouvir, e vamos ter isso em conta.

A exposição de Vera Marmelo está patente até 13 de Outubro.

Pegando nessa ideia que falaste de trazer os artistas e mostrar-lhes a cidade. Notaram ao longo destes vinte anos, que o Barreiro tem  mudado ou crescendo e de que maneira isso afecta o festival?

Vitor: Eu acho que ao longo dos anos ajudou bastante a gente já cá andar e as pessoas conhecerem-nos, os nossos parceiros da cidade, as entidades, as associações que nos acolhem. Ajuda, claro que ajuda. Há um registo do trabalho. Também nos ajuda a ficar um bocado mais espertos ao longo do tempo e percebermos como é que se fazem bem as coisas. Como é que se trata bem as pessoas que nos abrem as portas e que nos acolhem. E que acolhem os nossos concertos.

Sentem que têm tido, ano após ano, apoio de outras entidades, associações, coletividades, alguma coisa?

Rui:Não sei se é tanto apoio, mas é mais uma abertura. A abertura, a disponibilidade para fazer coisas ou para nos tentar ajudar a cumprir algumas ideias.

Vitor: E grande confiança.

Rui: Pois é, isso. Nós muitas vezes instalamo-nos e ocupamos a casa das pessoas, no caso das coletividades. É preciso ter confiança que não vamos estragar nada, que não vamos fazer mal nas coisas. Mas acho que é isso que temos praticado e tem corrido bem.

E a nível económico,  continuam a sentir dificuldade na logística ou programação do festival?

Rui: Eu tenho dito isto nos últimos tempos, porque este ano isto apresentou-se de maneira bastante crua e brutal, é que festivais como o nosso, e há tantos pela Europa inteira, operam um bocado com base no que veio da revolução das low cost, que de repente é muito mais fácil de voar, do que era há 10 ou 15 anos atrás. E ainda estamos todos um bocadinho a viver uma coisa que agora já é um bocado uma ficção, porque os preços das viagens aumentaram brutalmente. Nós andamos a pagar, por exemplo, voos de Berlim ao triplo quase do que andávamos a pagar há 3 ou 4 anos atrás, e Berlim era um sítio barato para voar. Ou seja, isto está a criar dificuldades, e pode vir a criar dificuldades ainda maiores no futuro, porque não sei se isso vai melhorar ou não. Para nós era muito difícil trazer um artista americano só para tocar um concerto, e continua a ser, mas agora mesmo fazer voar alguém da Alemanha ou da Noruega, ou seja, lá de onde for, que era razoável, agora é caríssimo, Mas isto dos voos é só um exemplo, mas que é um exemplo bastante relevante. Porque nós temos muita programação de artistas estrangeiros.

Vitor: Acho que o maior choque foi mesmo a seguir à pandemia, na verdade, em que não estávamos assim, havia que sentir  mesmo os preços a mudarem, acho que não estávamos assim tão cientes até começarmos a ver os orçamentos a cair, mas daí em diante acho que já estamos um bocado vacinados.

E se fez-vos pensar mais a nível nacional, programar mais artistas portugueses para controlar melhor os custos?

Rui: Até agora não. Eu espero que não sejamos obrigados a isso, porque nós, quando programamos artistas portugueses, é porque achamos que é importante programá-los, porque gostamos.

Vitor: A questão de programar portugueses, quando estamos a pensar a programação, não está assim tão relacionada com o fator do preço, é uma coisa que viramos naturalmente na programação.

Rui: Acho que o que nos dá realmente gozo é ver músicos portugueses que nós achamos que são muito bons e que valem mesmo a pena. E tem que ser sempre assim. É como programar músicos do Barreiro. No ano passado, acabámos por ter três concertos diferentes com músicos do Barreiro. Foi incrível, ficámos mesmo felizes, mas este ano não temos nenhum, e é mesmo assim, dar tempo também para a haver renovação de gerações. Felizmente até tem havido nos últimos tempos, malta nova a fazer coisas, ou uma malta velha a fazer coisas diferentes, etc. Mas não pode ser por um esquema de quotas.

E a nível da comunicação, notaram que este ano, por ser a vigésima edição, tiveram mais atenção?

Rui: Ainda não. Qual comunicação social? É mais essa a questão. Não é tanto sobre nós, mas mais sobre o meio em que estamos. Aparentemente, já ninguém se pode dar ao luxo de escrever sobre coisas que não sejam conhecidíssimas. E nós,  hoje em dia apostamos muito mais em comunicação do antes fazíamos. Temos limites para isso também, de qualquer maneira. E às vezes preferimos, por exemplo, ter peças físicas bonitas e bem desenhadas e com conteúdo.  Sentimos que já nos ultrapassa um bocadinho. Eu acho que sempre fomos bem tratados pela comunicação social aqui de Portugal, tendo em conta a capacidade quase nula de investir nisso. Mas também acho que o panorama já mudou muito. Nós começámos numa altura em que ainda havia um Blitz em jornal. Em que haviam suplementos culturais do Público, Expresso ou do Diário de Notícias.

Vitor: Olha, eu acho bastante miserável, a cobertura da imprensa nacional do festival. Desde há bastante tempo. Suponho que é um bocado o que é. Os jornalistas são cada vez mais…não sei, inexistentes ou comprometidos com as linhas editoriais generalistas.

Rui: Ás vezes tens televisões a irem à Feira do Fumeiro daqui e dali. E depois à Feira do Berbigão ali em baixo. E está tudo bem. Mas depois secalhar existem várias coisas dessas mas não há assim tantos OUT.FEST no país. Mas isso parece uma coisa natural. Ou para as redações, ou para os jornalistas, não sei.

Acham que é por ser um festival que, por si, já é um pouco de nicho e ser no Barreiro?

Vitor: Acho que há muitos anos, se calhar, meio que o ignoram. Ou a saberem que existe. Não sei, se calhar é uma espécie de tradição.

Rui: Eu não sei se é ignorar. Não vou tanto por aí. Antes tinha a teoria que o Barreiro não é exótico o suficiente. Porque não é longe, é pertinho de Lisboa. Apesar de ser uma realidade completamente diferente. Às vezes, penso que se isto fosse no meio do Alentejo, tínhamos mais cobertura. Não sei. Não sou como o Vitor, não acho que sejamos ignorados. Não me queixo assim tanto. Porque eu sei que isto também é uma luta. Há muito evento cultural aqui que também tem tanto mérito ou mais que o OUT.FEST, que é igualmente ignorado neste país. Não é uma coisa só nossa.

Vitor: Mas está tudo bem. Temos os nossos canais. Trabalhamos a nossa comunicação. Passamos a buscar as pessoas por outras vias. Digo isto sem grande amargura, é o que é.

Rui: Mas também prefiro ter dez pessoas a escrever por palavras próprias sobre aquilo que fazemos do que ter cem a publicar um comunicado de imprensa. Tem muito mais valor. Não sei se conseguimos isso, mas eu ficava satisfeito se pudéssemos escolher entre duas dimensões de cobertura e de atenção, eu gostava de ter menos, mas mais personalizada. Acho que isso tem mais impacto.

Voltando à questão do livro, acham que acaba por ser importante a sua existência para dar a conhecer às gerações mais novas muitos dos artistas ou bandas emblemáticas que por cá passaram, como os The Fall? Foi um bocadinho nessa perspectiva de deixar o testemunho?

Rui: Também não sei se foi para impressionar. Acho que para nós foi um exercício fixe. Não vale a pena dizer que não temos orgulho de algumas coisas que fizemos, sim, claro que se sente isso também, mas acho que isso já estava lá ainda antes de nós abordarmos a questão com o livro. Mas a ideia foi mesmo obrigar-nos a fazer uma espécie de reflexão e poder oferecer isso às pessoas. Acaba por ser também uma homenagem à Vera e a outras pessoas que fotografaram o festival, porque é um livro com muita imagem. O próprio livro foi pouco planeado, como tudo o que fazemos. Ficou assim mas poderia ser completamente diferente.

O design do livro é da autoria de José Mendes.

Olhando em pespectiva, qual foi a edição do festival em que sentiram que houve um salto significativo face às primeiras edições?

Vitor: A edição de 2010 teve um grande cartaz. Destacava também 2018, senti que esse ano foi muito bom, também. Mas acho que todos os anos crescemos um bocadinho, tem sido sempre para a frente.

Rui: Eu acho que a edição de 2018 foi importante, porque foi aquela em que decidimos pôr as pessoas a andar pela cidade. Mas tivemos vários anos que foram importantes e por razões diferentes. 2007 foi o primeiro ano em que trouxemos artistas internacionais. Em 2009 lembro-me que quisémos dar um grande salto, mesmo com pouco dinheiro. E 2010, que foi o primeiro ano em que tivemos o apoio da DGArtes, e aí é que percebemos que secalhar podiamos fazer isto durante mais anos. Esse apoio foi motivador. E depois 2018, porque acho que começámos a abrir mais a programação. Mas também 2022 e 2023, sentimos que foram os melhores OUT.FEST de sempre. Mas é a nossa sensação. Mas um ano importante também foi o de 2012, que foi um ano em que não tivemos o apoio da DGArtes, por causa da Troika, e pensámos em não fazer o festival, mas a verdade é que fizemos com aquilo que tinhamos e tivemos excelentes concertos.

Vitor: Mas a coisa fez-se, e foi importante. Visivelmente mais pequeno para nós, mas creio que não passou para o público.

Imaginam-se a fazer o OUT.FEST daqui a vinte anos?
Rui: Eu vejo-me a programá-lo, mas não me vejo a executá-lo. Ainda ontem estava no escritório a pensar que estamos a ficar um bocado velhos. A parte da produção tende a pesar à medida que os anos passam.

Vitor: Não acho implausivel. Se conseguimos fazer vinte anos disto, deixa ver se conseguimos fazer outros vinte.

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