Luís Gouveia tem 48 anos e é designer há mais de 20. Já trabalhou com marcas de relevo nacional como a Delta, mas também para projectos mais locais, como o Barreiro Rocks, desde 2014 até à última edição. O Luís apanhou o Último Barco para nos falar sobre a sua infância no Barreiro velho, design e música, não fosse também guitarrista e vocalista dos Monkey Cage.
Nasceste no Barreiro em 1974. Como foi a tua infância no Barreiro?
Foi na rua a brincar. Os meus pais separam-se novos e eu fui criado entre os meus pais e os meus avós do lado materno, que viveram sempre no Barreiro velho, ao pé dos Penicheiros, e os avós do lado paterno que viviam na Recosta. Jogava à bola, ao berlinde, ia à pesca à muralha. Uma infância normal nos anos 80. Foi bom e diferente do que é hoje em dia, onde os miúdos passam muito tempo em casa, nós estávamos sempre na rua.
Como olhas hoje para a zona do Barreiro velho? Bem diferente do que era na tua infância.
Sim, do que eu vi, o Barreiro velho passou por 3 fases. Nos anos 80, quando era muito miúdo, o Barreiro velho ainda não era a zona “da noite”. Era o Barreiro velho das portas abertas, com vida familiar, algumas coletividades, tascas, restaurantes e miúdos a brincar na rua. Havia a malta do Largo Casal, da Cerca, da zona da Nossa Senhora do Rosário, etc. Na Recosta acontecia o mesmo, pequenas tribos de miúdos distribuídas pelas ruas. No início dos anos 90, a noite começou a crescer no Barreiro velho e passou a ser mais uma zona de vida noturna com bares e muita agitação ao fim de semana. Atualmente não é nada, está aos caídos, abandonada e esquecida. Mas parece-me que agora está a lentamente a recuperar.
“É das coisas que mais pena me dá, é ver o Barreiro velho assim, não que quisesse a volta da vida noturna, mas sim voltar a ser um sítio onde havia uma vida social muito caraterística daquela zona.”
Porque achas que se deu esse abandono da zona? Não houve renovação?
Muitas das pessoas que eu me lembro em miúdo, eram idosas e acabaram por falecer, não houve uma renovação natural que ocupasse essas casas, por isso ficaram meio ao abandono. Depois a vida noturna também não ajudou muito a zona, era uma noite intensa, com muito barulho e copos à mistura e isso não deve ter ajudado a uma renovação mais saudável, deixando de ser um local apetecível para morar.
Como surge o teu interesse no design?
Eu sempre desenhei a vida toda. Tinha muitos momentos sozinho e passava o tempo o desenhar. Copiava os livros de banda desenhada que tinha, quando íamos a um restaurante começava a desenhar no papel de mesa, os meus cadernos escolares estavam sempre repletos de desenhos que fazia nas aulas. Eu sempre fui tímido e o desenho era uma forma de desbloquear conversa com outros miúdos. Sempre foi um vício, teve sempre em mim. Sempre gostei de desenhar, o lápis e o papel sempre estiveram comigo.
Mas acabaste por estudar design e seguir mais essa área.
Sim, a minha intenção era seguir ilustração e fazer banda desenhada, mas na altura, não me parecia ter muita saída profissional e eu queria alguma estabilidade financeira. O design gráfico andava ali por perto e na faculdade acabei por me apaixonar pela área. Não é desenho livre, mas é muito visual. Fui aprendendo até aos dias de hoje. Mas sim, a minha intenção inicial era ser ilustrador. Tinha de ser alguém ligado ao desenho, nem que fosse pintar paredes em bares, como já fiz.
Tens alguma referência na banda desenhada?
Os meus heróis são o Quino e o Goscinny, e nem o são pelo desenho em si, mas mais pelo conteúdo. Cresci com eles: com a Mafalda, o Asterix e o Lucky Luke. Depois comecei a descobrir o Enki Bilal, o Milo Manara, o Hugo Pratt ou mesmo a Marvel e a DC. Mas sempre gostei mais de banda desenhada europeia. Mais tarde também comecei a gostar de ler curtas, tipo Charlie Brown ou Calvin & Hobbes.
Mas hoje ainda consomes muita banda desenhada?
Não tanto como antigamente, mas ainda vou lendo. Deixei de ler o Asterix a partir do momento que o Uderzo morreu, comecei a não gostar tanto das histórias. Acho que o Goscinny é que dava a alma aos personagens e o Uderzo ainda fazia parte desse encanto. Depois também comecei a ter outros interesses. E agora a Netflix…Todas as noites quando ia dormir levava um livro de banda desenhada para adormecer, agora é o iPad.
Depois de 20 anos a trabalhar em agências, tendo chegado a diretor criativo, agora estás há cerca de um ano como freelancer. Como se deu esta decisão?
Eu continuo ligado às agências e a maior parte do trabalho que faço como freelancer é para as agências. Eu sempre gostei de estar agarrado ao projeto em si, e também nunca me senti um líder. A função de diretor criativo passa também por gerir recursos humanos, logística e uma série de burocracias que me aborrecem. Fui diretor criativo durante quatro anos. No primeiro ano achava que não ia gostar, no segundo tinha a certeza que não ia gostar, no terceiro já não gostava mesmo e no quarto já não aguentava. Falei então com alguns amigos que trabalham na área sobre a hipótese de me tornar freelancer, e um desses amigos, que trabalha numa agência onde já estive (Born), perguntou-me se queria trabalhar com eles em regime de avença. E assim foi. Tenho feito trabalhos para eles, também já fiz coisas para outras agências e alguns clientes pessoais como a Câmara do Barreiro, mas 70% do trabalho que tenho feito é para a Born e até agora, não estou arrependido. Estou a fazer coisas que gosto e da forma que gosto sem a responsabilidade da direção criativa, que acho que não é para mim.
Dentro das várias áreas do design, qual é aquela que te chama mais?
Branding. Claramente branding. Mas também gosto muito de design editorial e packaging. Mas branding é o que me fascina mais, porque é o início de uma marca e pode abranger muitas áreas do design ao mesmo tempo. A personalidade da marca começa ali na sua identidade que vai muito além de um logotipo. É uma folha em branco pode ser preenchida com cartazes, cores, brochuras, estacionários, lettering, ilustrações, fotografia, site, apps, objetos tridimensionais e muito mais. Para mim isso é estimulante e dá muito gozo.
Destacas algum trabalho em específico?
Talvez os cafés Bellissimo. É algo que me orgulho de ter feito. Foi dos trabalhos de packaging e de identidade que mais gostei de fazer. Os trabalhos para o Barreiro Rocks também me deram sempre imenso gozo fazer porque era totalmente sem limite, podíamos fazer o que quiséssemos e também porque gosto muito de trabalhar a área da cultura. Por ser aqui no Barreiro e pelo projeto em si, também gostei muito de fazer a identidade da ADAO.
Pegando no Barreiro Rocks, eras uns dos quatros designers responsáveis pela parte visual do festival desde 2014 até à última edição. Como funcionava esta dinâmica criativa?
Isso começou tudo porque fizemos uma exposição com o Barreiro Rocks em 2008 ou 2009, na Galeria Municipal do Barreiro (acho eu) onde agora é uma agência imobiliária. Nós os quatro, mais dois amigos nossos de Lisboa, fizemos duas serigrafias cada um, dedicadas ao rock. Depois surgiu a hipótese de fazermos os cartazes do Barreiro Rocks, e como eramos quatro, fazíamos quatro cartazes diferentes por edição. Só no último ano é que fizemos apenas um a quatro mãos. Pessoalmente achava mais giro cada um fazer o seu. As pessoas até comentavam as diferenças que iam vendo nas ruas.
No meio de tudo isto, também tens uma banda, os Monkey Cage.
Sim, surge a partir dos Stereofux, que era uma banda que eu tinha e que acabou. Eu e o Mantas, o outro guitarrista, decidimos continuar a tocar com um novo projeto. Nascemos em 2015, creio eu, e é uma continuidade no fundo, porque dos 5 elementos que passaram pelos Stereofux, 3 estão nos Monkey Cage. No fundo os Monkey Cage são filhos dos Stereofux mas com uma abordagem músical diferente, talvez mais musculada.
Têm alguma coisa planeada?
Estamos a gravar o terceiro álbum. Já temos uma série de músicas alinhavadas. Mas sem stress e sem pressões, vamos fazendo tudo com calma.
É um projecto de amor, no fundo.
Sim, adoro o que fazemos, mas tenho uma visão realista e pragmática do nosso projeto. Pelo estilo de som, pelo tempo que temos, pelo que se ouve hoje em dia, é mesmo por amor. Os miúdos hoje estão mais dispersos pelos estilos. As coisas são mais efémeras e mais diversificadas. É difícil arranjar espaço para crescer, só em alguns programas específicos de rádio é que se ouve este tipo de música, há poucos espaços para bandas como a nossa tocar. A ideia é estarmos quatro amigos a desbundar e a fazer, dentro do possível, o que gostamos. Quando era miúdo ainda tinha esse sonho, de ter uma banda famosa e tal. Mas nunca foi a minha primeira opção. Sempre achei que o meu futuro passava mais pelo desenho do que pela música. Mas o amor entre o design e a música é ela por ela.
Achas que se ainda houvesse um Barreiro Rocks poderia espicaçar gerações mais novas?
Talvez. O Barreiro Rocks era lindo para mim. Vir para aqui ouvir música ao vivo à porta de casa, com amigos. Sempre gostei do Barreiro Rocks. Ouvir malta mais nova a serem recebidos de braços abertos por malta mais velha e vice-versa sem qualquer discriminação etária, no fundo os mais novos eram espicaçados pelos mais velhos e ao contrário também. Isso era fantástico. Tenho muita pena que tenha acabado.
Tens ainda algum projecto que gostavas de realizar?
Eu nunca penso muito a longo prazo. Não pensei, por exemplo, há um ano atrás que íamos gravar novamente um álbum este ano ou que um dia ia ser diretor criativo. A médio prazo gostava de um dia ter um atelier, é talvez o projeto que tenho há mais anos na minha cabeça. Um atelier onde pudesse fazer design, mas também serigrafia, desenhar, pintar e até gravar. Mas não é um pensamento obsessivo, se tiver que acontecer, acontecerá.
Voltando ao início, e a tua paixão da banda desenhada, ainda gostavas de fazer um livro de BD?
Sim, gostava, mas tinha de voltar a desenhar. Perdi o hábito e o manuseamento. Se começasse a desenhar regularmente, acho que era capaz de fazer. Ou um livro com base em ilustração. O que eu gosto na banda desenhada é que é são imagens estáticas que se tornam dinâmicas à medida que vais lendo. Eu quando era miúdo adorava isso. É como ver um filme, no fundo. Nunca gostei tanto de ler coisas se não fossem acompanhadas de imagens, a minha mãe até me comprou, quando eu andava a estudar, “Os Lusíadas” em banda desenhada. Para mim, tem de ter sempre bonecos. É assim, nasceu comigo, não sei explicar.