Lurdes Lopes: “É bom ser Chefe de Divisão da Cultura na Câmara do Barreiro porque o próprio tecido cultural é interessante”

Há 16 anos que Lurdes Lopes é a Chefe de Divisão da Cultura da Câmara do Barreiro. Apanhou o último barco para nos contar como tem visto e trabalhado a cultura da cidade, a sua evolução e os desafios que ainda estão pela frente.

Vives no Barreiro practicamente desde que nasceste, certo?

Sim, eu vim para o Barreiro com sete meses. Nasci em Lisboa e vivi na Damaia até aos sete meses. Depois vim para o Barreiro, onde vivo até hoje. A minha família é toda da Beira Baixa, mas desde que “aterrámos” aqui, nunca mais saímos.

E como foi a tua infância no Barreiro?

A minha infância e adolescência foi toda ela vivida no Alto da Paiva, que é uma zona muito específica do Alto do Seixalinho, que tinha todas as características de um bairro do Barreiro na década de 70. Eu vim para o Barreiro em 1974. Acho que andei a estrear todas as escolas do Barreiro até ao 12º ano. E foi uma infância com tudo o que havia de bom e de mau. Estava sempre a brincar na rua e, de vez em quando, vínhamos à vila, ao centro da cidade. Ainda tenho memória das comissões de moradores e de festas nas colectividades. O meu parque infantil era o Convento da Verderena. Foi uma infância tranquila com uma adolescência que também respirou o ar dos tempos que foi a década de 80 no Barreiro, que foi muito afetada pela toxicodependência e alguma pequena criminalidade. Depois comecei a descobrir o que era o Barreiro super giro: apanhava o autocarro ou ia a pé pela Escavadeira para o centro do Barreiro. Fazíamos o percurso habitual que era ir à Fábrica do Gelo, Alburrica, Barreirense, Praiense, Penicheiros. Tive sorte porque apanhei uma fase da noite do Barreiro onde eu saía para estes sítios e descobria álbuns, bandas, artistas. Eu nunca me esquecerei de noites passadas no Alburrica e na Fábrica do Gelo a descobrir música, e a ouvir coisas novas. E nesta altura havia uma geração de pessoas daqui que trabalhava em rádios ou jornalismo que me influenciou um pouco. Sair à noite no Barreiro era muito interessante do ponto de vista cultural. A noite não tinha nada a ver com a que é hoje.

Saías para ouvir bandas e conhecer novas coisas, e não apenas “sair por sair”.

Sim, eu ainda hoje falo com pessoas que frequentavam estes sítios comigo. Muitas delas, marcaram-me muito.

Houve, então, alguma influência destas pessoas na tua escolha de percurso académico?

Mais ou menos. Eu aos 11 anos queria ser jornalista, não me perguntes porquê. Depois também o facto de ter conhecido várias pessoas desta área, como o Fernando Sobral, que infelizmente faleceu há pouco tempo, e que era jornalista no Se7e. Eu e as minhas amigas comprávamos sempre o Blitz, o jornal, e o Se7e. E ter conhecido estas pessoas, fez-me acreditar que seria possível. Motivou-me a estudar e a entrar para essa área.

E acabaste mesmo por ir estudar Comunicação.

Sim, entrei em Comunicação na escola que queria onde, curiosamente, daqui a uma semana, a minha filha também vai estudar.

Também em Comunicação?

Não, para outro curso mas na mesma escola. Mas depois de ter entrado no curso, tive um grande baque e percebi que não queria falar sobre o que as outras pessoas andavam a fazer mas queria ser eu a fazer coisas. Por isso, na faculdade, optei por estudos na área da cultura, mais especificamente cinema. Que é algo que nunca me arrependi, foi uma opção por gosto, e acabei por terminar o curso nessa vertente. E foi muito importante ter tido esta base, porque acabei por conseguir entrar para a Videoteca, que pertencia à Câmara de Lisboa, onde acompanhei uma série de festivais e eventos de cinema, antes de vir para o Barreiro.

Acabaste por conseguir trabalho na área que estudaste, na cultura. O que fazias na Videoteca de Lisboa?

Eu tive bastante sorte, porque entrei como estagiária e acabei por ficar lá dez anos. De 1996 a 2006. Fazíamos programação em muitos sítios icónicos, como o cinema São Jorge, na própria Videoteca em Alcântara, no Fórum Lisboa, que era o antigo Cinema Roma. Foram dez anos em que aprendi muito e que, ao fim desse tempo, apercebi-me que já tinha feito muita coisa numa área muito específica e apetecia-me sair. Por isso, tive vontade de voltar ao Barreiro para trabalhar na área da cultura.

E acabaste por conseguir.

Sim, eu fui mãe em 2005, e achei que ao fim de dez anos em Lisboa, seria melhor tentar trabalhar aqui no Barreiro. Enviei um e-mail para a Câmara de Lisboa mostrando interesse em mudar para aqui, se fosse possível, e caso houvesse disponibilidade e interesse. Em 2006, acabo por ser contactada para vir a uma reunião aqui na Câmara do Barreiro. Acontece que eu tinha pedido transferência como Técnica Superior e sou surpreendida quando me convidam para ser Chefe de Divisão da Cultura. Era algo que eu nunca imaginava e tive sorte. E foi um acto de coragem, porque eu não conhecia nem o Presidente nem a Vereadora. E mantenho-me nesse cargo há 16 anos, e nunca me arrependi de ter dado este passo.

Como foi passar de uma autarquia como Lisboa, que é a capital e tem uma dimensão muito maior, para uma cidade como o Barreiro onde, ainda por cima, lideravas todo o departamento cultural?

Foi muito bom. Eu lembro-me de ter colegas da faculdade que olharam para mim de lado quando eu lhes disse que ia mudar de Lisboa para o Barreiro. Como quem diz “vais passar de cavalo para burro”. Mas nunca me arrependi porque aprendi imenso e, acima de tudo, aprendi a trabalhar a uma escala mais humana.

“Aqui tu acabas por conhecer todos os artistas da cidade, todas as instituições culturais e acabas por conseguires mais e melhor. Aqui acompanha-se melhor as coisas e, pessoalmente, foi muito enriquecedor, porque acabei por acompanhar várias áreas da cultura. Só na música, é uma riqueza. A cidade é cada vez mais atractiva. É bom ser Chefe de Divisão da Cultura na Câmara do Barreiro porque o próprio tecido cultural é interessante.”

Isso ajuda imenso o teu trabalho. E o Barreiro é uma cidade progressista e costuma estar à frente do seu tempo em termos culturais.

Já existe muita “matéria prima” aqui, não sendo, por isso, necessário estar sempre a ir buscar lá fora.

Sim, não querendo ofender nenhum território nacional mas, no Barreiro, não é preciso inventar nenhum festival do chocolate só porque sim. Imagina, o Jazz no Parque, que é dos eventos que mais prazer me deu organizar. Nós temos duas escolas de jazz no Barreiro, uma delas com mais de 20 anos. Já é algo endémico, é natural. A cidade já respira jazz, não é necessário inventar muito.

Em que consiste, literalmente, o teu dia-a-dia, enquanto Chefe de Divisão da Cultura da Câmara?

É cada vez mais complexo, porque felizmente entraram, pela primeira vez, a questão das candidaturas no âmbito da cultura. Voltando um pouco atrás, há um trabalho de base de ligação com os agentes culturais. O município tem uma série de protocolos com várias associações culturais que importa ir acompanhando. E isso é algo que acontece todos os dias do ano, com total independência, no teatro, cinema, música, artes visuais. Isso é algo que a cidade tem e que a Câmara dá suporte. Em termos de equipamentos, temos este edifício gigante, de cinco andares, que é o Auditório Municipal Augusto Cabrita, que vai fazer 20 anos, e finalmente viu em 2022 ser considerado um dos 39 equipamentos a nível nacional que recebe financiamento da administração central para a sua programação. O AMAC acaba por ser o coração da cidade no que diz respeito à cultura. Conseguimos trazer grandes referências nacionais, fazer residências artísticas, oferecer boas condições técnicas. Temos também o Teatro Municipal, onde está a ARTEVIVA, e depois temos uma série de iniciativas ao longo do ano, como o Jazz no Parque, as Festas do Barreiro, o Festival de Artes de Rua, por exemplo. Temos também conseguido, nos últimos anos, apoio a candidaturas, que foi algo muito importante durante a pandemia, onde nos faltou tudo. Lembro-me que conseguimos um financiamento, através do Mural 18, de 69 mil euros e decidimos alocar a totalidade da verba para apoiar a comunidade artística local. Fotógrafos, músicos, teatro, artes visuais, todo o dinheiro foi para eles. No fundo, metade do nosso dia-a-dia é gerir montantes e procedimentos para conseguir garantir financiamento para a área da cultura.

Dá-me ideia que todos essas candidaturas acabam por ser complexas e trabalhosas de fazer.

É muito complexo. Por exemplo, no projecto “Comunidades em Ação”, decidimos que íamos desafiar toda a comunidade artística local a apresentar projectos que tenham como foco apoiar comunidades desfavorecidas. Conseguimos apoiar 17 entidades. E tudo isto é uma carga administrativa. Eu gostava de dizer que grande parte do nosso trabalho é programar e apresentar ao público. Cada vez há mais necessidade de dar robustez administrativa a tudo isto. O orçamento da cultura também já é superior a um milhão, e canalizar isso é cada vez mais desafiante.

E toda a gestão dos equipamentos culturais municipais também é feita pelo vosso departamento.

Sim, e neste momento, por exemplo, o AMAC já não consegue dar resposta a todos os pedidos.

“Há uma falta de equipamentos culturais na cidade, nós sentimos isso, o público sente e as associações também. Não temos, já há algum tempo, uma sala de concertos, e que faz muita falta. No entanto, o município está a preparar-se para adquirir o Teatro-Cine, que é fantástico. Estamos a trabalhar para ter um novo teatro municipal para o ARTEVIVA, companhia residente do actual teatro municipal. Também estamos a estudar novas valências para a Casa da Cerca, no Barreiro Velho. No fundo, além de todo aquele trabalho administrativo, estamos numa fase muito prospectiva. Gostava muito que nos próximos dez anos tivéssemos mais três ou quatro equipamentos.”

A falta de espaços já fez com que tivessem de rejeitar algumas propostas, mesmo até de fora.

Sim, claro. Por exemplo, no AMAC, no qual recebemos um financiamento de 100 mil euros da administração central, temos de fechar a programação de 2024 até ao final de Outubro deste ano. O que quer dizer que, se nos apetecer alguma proposta irrecusável de alguma entidade cultura do Barreiro, vai ser difícil de encaixar. A cidade quer apresentar cultura e já temos algumas limitações. Depois tens casos de espectáculos de teatro aqui no AMAC que esgotam num dia, e depois tens de fazer uma segunda ou terceira sessão, porque não chegam os 400 lugares do auditório. Tal como o teatro municipal, é outro bom exemplo. Tem 86 lugares, creio eu, e para algumas produções que o ARTEVIVA já produz, o tamanho do palco e da plateia já condiciona. Já para não falar da actividade da escola de teatro, que o último número que tive acesso registava 150 alunos. Para dar resposta, temos de dar o pulo nos equipamentos. Neste momento,  eu acho que conseguíamos ter dois ou três AMACs a funcionar, genuinamente.

Tens uma ideia, ou mesmo alguns números, que mostrem o impacto que a cultura tem na economia da cidade?

Há um impacto que eu vejo quando, por exemplo, entidades da área financeira e do investimento utilizam o argumento da cultura para atraírem pessoas para viver no Barreiro. Lembro-me que houve um destes novos empreendimentos que divulgava o Jazz no Parque como um argumento atractivo da cidade. Não tenho dados económicos ou de emprego, mas notas. Os espectáculos estão cada vez mais esgotados e mais internacionais. No Jazz no Parque já vem muito público de fora, e mesmo no OUT.FEST, que é um festival internacional, e que tem uma grande percentagem de público estrangeiro.

Ao longo destes 16 anos, tens notado um crescimento cultural? A nível de oferta mas também de procura do público.

Eu apanhei os anos da Troika. Foram anos extraordinariamente difíceis. Lutámos muito para continuar a fazer cultura e não foi fácil. Nos últimos anos, não estamos nesse terreno, de todo. Já tens entidades no concelho apoiadas pela DGARTES, que também reconheceu o AMAC na Rede de Teatros e Cine-Teatros. Estamos numa nova rede, a Rede Portuguesa de Arte Contemporânea para dois equipamentos, o AMAC e a PADA. Conseguimos reforçar protocolos, e apoiar melhor eventos como o OUT.FEST. Há dez anos atrás era impossível disponibilidade para fazer um Jazz no Parque, por exemplo. Honra seja feita ao Jorge Moniz, que é o curador e tem total liberdade, mas não seria possível faze-lo aqui há uns anos.

Sentes que, quem está de fora da cidade, vê o Barreiro culturalmente de forma diferente?

Acho que sim. Até porque em certos círculos que nos movimentamos, eu vejo como alguns colegas da cultura, de outros municípios, olham para nós e percebem que é fixe trabalhar na cultura no Barreiro. Falam-nos da ADAO, por exemplo, que é outro espaço incrível da cidade. E noto até no interesse de artistas de dimensão nacional que querem tocar no Barreiro. Este ano, por exemplo, estreámos aqui o projecto teatral do Marco Martins, o “Pêndulo”, que nasceu de uma residência artística feita no Barreiro, no Futebol Clube Quinta da Lomba. Estrearam aqui, depois foram para o São Luiz, e continuam em digressão. E aqui abriram-se portas para o futuro, porque tudo isto correu bem. Eu acho que também ajuda o facto de termos uma boa equipa na cultura. E é uma equipa que se tem mantido, independentemente das mudanças políticas. É um trabalho colectivo que tem funcionado muito bem. E quando as coisas correm bem, já não precisamos de ir atrás de um artista para vir cá tocar, ele já nos inclui nas digressões de forma natural. Claro que ajuda estar perto de Lisboa, não é a mesma coisa programar aqui ou a 300 km de Lisboa ou do Porto. Mas eu sinto-me genuinamente confiante com aquilo que o Barreiro possa vir a ser na próxima década. Já há o talento, precisamos de mais equipamentos e tentar crescer na profissionalização. Há estruturas no Barreiro que com maior suporte conseguiam trabalhar com mais segurança.

Achas que a divulgação das actividades culturais podia ser melhor? Como se consegue chegar a mais pessoas?

Cada vez é mais online, e menos papel. Mas no online há muito barulho, e as coisas perdem-se muito. Eu creio que as coisas são bem divulgadas, talvez nos faça falta alguma promoção. As pessoas sentirem que é mesmo preciso ir a determinado evento. O “Pêndulo” é um exemplo disso. Foi estreado no dia 10 de Junho, no feriado, onde estavam a acontecer vários eventos. Deve ter sido o evento deste ano que mais gente me disse que “não soube” ou “não pude”. Na parte que nos compete, em termos de comunicação, temos conseguido dar um grande salto porque temos um grupo de designers maravilhosos. Quando tens um José Mendes, Luís Gouveia, Carlos Guerreiro, Sílvia Rodrigues, Pedro Brito e muitos outros, torna-se mais fácil. Acho que o único que fomos buscar de fora foi o Nuno Saraiva, e foi para as Festas do Barreiro. Tu vês o cartaz do Jazz no Parque e é impossível ficares indiferente. Mas temos de continuar a tentar chegar a novas pessoas, claro. No entanto, tenho um exemplo de algo que não teve uma grande comunicação e que tem sido um sucesso, que é o Clube de Leitura, que decorre na Biblioteca. Neste momento, temos um grupo bastante robusto com pessoas da Argentina, Brasil, Angola ou Moçambique. E de idades dos 20 aos 80 anos. Por isso, é tudo um pouco relativo. Temos espectáculos aqui no AMAC que esgotam numa hora. Depende muito.

Num cenário hipotético, sem limitações monetárias ou de espaços,  qual seria o teu sonho para o Barreiro?

“O meu sonho era agarrar na Casa da Cultura, reabilitá-la e transformá-la na maior sala de espectáculos do distrito de Setúbal. Falando em sonho, era isso. E aí, conseguíamos trabalhar a todas as escalas. Era algo muito importante para o Barreiro.”

Mas a Casa da Cultura é um equipamento que pertence à Baía do Tejo.

Sim, e está fechada. E é um sonho porque nem está propriamente nas “nossas mãos”. Ainda conseguimos, há uns anos, fazer uns concertos lá e enchia-se os 800 lugares. Por isso, isto é a prova de que existe procura. Ah, mas lembrei-me de outro. Posso continuar a sonhar?

Claro.

Gostava que o Barreiro tivesse uma biblioteca do século XXI. Eu adoro a nossa biblioteca e estudei lá muitos anos. Mas uma biblioteca para todos os públicos, com um bom auditório e recheada de novas tecnologias, era um sonho. Acho que era o necessário para conseguirmos trabalhar em todas as escalas e em todas as vertentes culturais.

Para crescer ainda mais.

Sim, porque nós temos massa crítica e conhecimento. Temos é alguma falta de condições financeiras. E claro que não vai mudar, por isso é que uns são mais sonhos que outros. O Teatro-Cine vai avançar, que já é um grande projecto. Mas sim, estes dois espaços, a Casa da Cultura e uma nova biblioteca, eram o sonho. E nem digo que era para colocar o Barreiro no mapa, era mesmo para conseguir trabalhar em todas as escalas. Eu acho que não devemos cair na tentação de ser a capital disto ou aquilo. O que importa é sermos bons e ter uma cultura constante, onde os artistas se sintam bem, e que o público sente que é uma boa cidade para ser vivida. Claro que o principal é a paz, o pão, a habitação e a saúde. Mas depois disto tudo, e nós vimos na pandemia, o que é que sobra? É a cultura. É o que nos faz mais felizes e que nos faz pensar. Eu continuo a achar que o Barreiro é uma cidade muito progressista e que sempre soube acolher. Nos próximos anos vamos acolher pessoas de áreas completamente diferentes. Uns com muito dinheiro, que compram um T5, e outros com pouco dinheiro, que vivem cinco numa habitação. Ainda por cima o nosso território é muito pequeno. Por isso, gostava que esta cidade continuasse a ter esse ADN acolhedor.

“Eu digo sempre isto às pessoas que não são da cidade: o Barreiro destruiu uma praça de touros para construir uma escola. E desculpem-me as pessoas que têm ligações à tauromaquia, mas isto diz muito sobre esta cidade.”

Um pouco como a imagem do Barreiro industrial que tem vindo a transformar-se ao longo dos anos, com espaços industriais que se reabilitaram para a cultura.

E ainda tens muito muito por onde crescer. Vejamos: as oficinas da EMEF, a estação Sul e Sueste, todo o território da Baía do Tejo, o bairro operário. Só aqui, tens uma área gigante por reabilitar. E já não tens muitas cidades assim no mundo.

Dava espaço para fazer um festival de grande dimensão.

Sim, e há um festival que encaixava perfeitamente no Barreiro: o Iminente. Tem muito mais relação com o ADN da cidade do que com Lisboa até.

Há pouco falaste da proximidade a Lisboa, como algo benéfico à programação aqui. Mas não achas que por estarmos tão perto, acaba-se por se concentrar lá demasiadas coisas?

Sim, mas Lisboa é a capital e é quase impossível fugir disso. Mas, por exemplo, tens o OUT.FEST, que enche sempre com gente de todo o lado. Em espaços poucos habituais, que é a das coisas que eu mais admiro no OUT.FEST , aquela capacidade de levar cultura à EMEF, ao moinho, à biblioteca ou à ADAO, saindo dos espaços mais habituais. Tu até podes não gostar daquela música, mas aquele conceito e aquele cenário…Aquela equipa tem feito um trabalho fantástico. E já é uma das marcas do Barreiro. Eu tenho a impressão que o Barreiro nunca vai ser uma cidade de um Rock in Rio, mas será de um OUT.FEST ou de um Iminente. Aliás, até as Festas do Barreiro, que são festas absolutamente populares, onde este ano estiveram cerca de 150 mil pessoas, tem o Spot da Juventude, que é um festival dentro de umas festas populares.

E que trás público só para aquele palco.

Exactamente. Até nisso, nós conseguimos ser um pouco diferentes. Dentro de umas festas populares, consegues ter um Spot da Juventude sempre cheio, com uma programação de luxo feita pela Gasoline, Hey Pachuco!, ADAO e OUT.RA. Dez noites que ouves música dos mais diferentes géneros.

Concordas, portanto, com a ideia de um certo equilíbrio cultural, em que tanto temos um concerto do Miguel Araújo ou Herman José e aquele pequeno concerto para 15 ou 20 pessoas.

Concordo, sim. Não gosto nada daquela distinção da alta cultura e da baixa cultura. Nós temos que oferecer tudo para todos. E tens artistas mais populares de grande qualidade, eu gosto muito de Ana Moura, é uma grande referência, mas é popular.

Eu pergunto isto porque, do que vou lendo e ouvindo, existe alguma crítica em torno do valores que são alocados aos artistas das Festas do Barreiro, no sentido em que se gasta num concerto o que daria para uma dúzia de outros concertos ou eventos mais pequenos, por exemplo.

Ás vezes é preciso ceder e abrir um bocadinho a programação para conseguirmos atrair mais público ou receita para, por exemplo, reforçar uma programação mais de nicho como a do Spot da Juventude. E nitidamente as Festas do Barreiro estão nesse sentido.

É preciso existirem os artistas mais conhecidos, e que trazem muito público ao palco principal, para sustentar o palco da juventude.

Sim, claramente. Nós conseguimos dar o salto em 2019 e orçamento para o Spot da Juventude foi duplicado. E claro que tem que haver cedências, até porque as Festas do Barreiro são festas populares e têm um cariz religioso. Mas, por exemplo, tens o Jazz no Parque onde não há cedências. Tens a visão de um curador, que é o Jorge Moniz, que delineou uma estratégia de programação, que é muito boa e que está longe de ser o jazz mais mainstream, mas é uma aposta ganha. Toda a gente já percebeu que são músicos de excelência que vêm cá e há muitas pessoas que vão ao festival que nem são ouvintes de jazz mas começam a ouvir porque gostam do espaço, do ambiente, da envolvência. Ou o apoio que o município dá ao OUT.FEST. Os rapazes da OUT.RA são completamente autónomos. Por isso, há uma altura para tudo, e quem gere dinheiros públicos tem de saber fazer esta gestão. Quer seja para um festival de música exploratória, para uma banda municipal ou para uma companhia de teatro, que nasceu num externato, passou para um teatro municipal e que os anos já demonstraram que já não é suficiente. Eu ainda me lembro, muito vagamente, que o grande auditório que o Barreiro tinha era o da biblioteca municipal, onde o Carlos Paredes chegou a actuar. Hoje, seria impensável.

Em 16 anos de programação no Barreiro, que artistas ou projectos destacas com mais orgulho?

Vou dizer-te vários. O projecto criado de raiz que me deu mais gozo, e que mais elogios eu recebi pela equipa, foi o Jazz no Parque. São aqueles eventos que parece que corre tudo bem, a equipa está motivada, a programação é boa, o espaço é excelente. Também me marcou muito o centenário da CUF, até porque tinha acabado de chegar aqui. Foram umas comemorações em que tinhas a presença da Câmara, que na altura era CDU, tinhas os engenheiros da CUF e tinhas a família Melo. Celebrava-se os 100 anos da CUF com os engenheiros e os operários, com visões às vezes opostas, sentados à mesma mesa, e aprendi imenso do que era o Barreiro. Este território é a cidade dos operários e dos engenheiros. Do alto conhecimento científico dos engenheiros e o cultural dos operários, que constroem a cidade. Só mesmo nesta cidade é que poderia estar a estátua do Alfredo da Silva ao lado do Parque Catarina Eufémia. Mas a beleza do Barreiro está muito aí, nesses contrastes. Assim mais recentemente, quero destacar a vinda da A Garota Não, aqui ao AMAC, no ano passado, ainda por cima na véspera do meu aniversário. Eu admiro-a muito e depois do espectáculo consegui trocar algumas impressões com ela. Para mim, foi uma grande prenda de anos. O “Pêndulo”, que foi um grande murro no estomago. Ter tido um contacto com aquela criação toda, com aquelas mulheres imigrantes que têm uma vida muito dura neste país, e vê-las a construir aquela espectáculo e apresentá-lo aqui, foi fantástico. Por fim, houve um momento que eu fiquei muito sensibilizada, que foi quando soubemos que ganhámos a candidatura do AMAC à Rede de Teatros e Cine-Teatros portugueses. Era um processo complexo e nós não partíamos de uma base que nos ajudasse muito, porque estávamos inseridos na Área Metropolitana de Lisboa, com 18 municípios e muitas estruturas culturais, por isso competimos entre nós. Mas, saber que colocámos o Barreiro no mapa, fomos escolhidos entre os 39 teatros municipais, e que tem um financiamento central foi como deixar de sermos os underdogs sabes? Conseguimos que respeitassem o nosso trabalho e que reconhecessem que o que estamos a fazer aqui conta e conta para o país. Isso, para mim, e para a equipa, foi mesmo muito bom.

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