Miguel Ribeiro Amado é arquitecto e foi um dos fundadores da ADAO – Associação Desenvolvimento Artes e Ofícios e do projecto Art in Town. Apanhou o último barco para nos falar sobre a criação destes projectos, arte urbana, urbanismo e como vê o Barreiro nos próximos anos a nível cultural.
Em que idade surgiu o teu interesse pelas artes?
Começou muito cedo, por ser filho de uma pintora, arquitecta e professora, e de um arquitecto. A minha mãe pintava muito, e isso sempre me criou curiosidade. De ver, de experimentar. O mais engraçado é que eu nem tinha assim muito jeito para desenhar, quando era mais novo. E isso até foi benéfico para mim, porque observava muito para tentar reproduzir. Portanto esse desenvolvimento e interesse pelas artes foi contínuo. Só no secundário é que comecei a desenhar mais a sério, e a desenhar o que gostava. Até hoje acho que não sei desenhar muito bem pessoas. Gosto mais de desenhar perspetivas e espaços urbanos. Isto foi tudo do lado da minha mãe. Da parte do meu pai, vem mais a arquitectura. Mas é engraçado porque quando aos cinco anos me perguntaram o que eu queria ser quando fosse grande, eu disse logo arquitecto. E hoje em dia sou arquitecto. Acho que quanto mais cedo percebemos aquilo que queremos ser, mais rapidamente chegamos lá. Ao início era a admiração pelo meu pai. Via os projectos dele em casa e tentava fazer os meus, com sete ou oito anos. E tinha também alguns amigos interessados na área, e fazíamos alguns projectos, que eram sonhos, no fundo. Depois, aos 16 ou 17 anos, um amigo meu, o Tiago, introduziu-me às latas, ao spray. Que parece algo simples de usar, mas não é de todo. Tem uma técnica completamente diferente, requer outra abordagem e é preciso saber utilizar a lata. Mas eu gosto muito disso, tenho muita curiosidade e adoro estar sempre a descobrir coisas novas. Por isso, comecei a ter mais contacto com a arte urbana e a ter vontade de fazer algumas intervenções no espaço público. Sempre gostei da ideia de inserir arte no espaço público. E o projecto do Art in Town é isso, é uma galeria a céu aberto. É a arte mais democrática que existe, está acessível a todos, inserida no espaço público. Eu acho que a arte pode ser utilizada como ferramenta para resolução de problemas, quer no meio urbano ou na sociedade. O Barreiro é uma cidade um pouco feia ao nível dos edifícios, e estas intervenções acabam por dar alguma beleza e vida a estas estruturas.
Acabaste por ter contacto com várias áreas das artes plásticas e isso deu-te uma visão mais ampla do caminho que querias seguir.
Sim, as várias sinergias que criei durante a adolescência e as várias pessoas que fui conhecendo, influenciaram o meu caminho artístico e profissional.
“No Barreiro temos muito o hábito de viver fora de casa. Vamos a casa para comer e dormir. Acho que é uma boa herança do passado, onde as pessoas têm o hábito de socializar no espaço público.”
Isso acaba por explicar porque é que gosto mais de desenhar espaço público do que edifícios. Para mim, é muito mais interessante e desafiante.
Em que momento surge a fundação da ADAO?
Eu tinha 23 anos, por isso foi em 2013, há dez anos já. Fui convidado pelo Ricardo Tota para fazer parte da equipa e como tinha feito o curso todo seguido, e nunca tinha tido aquele tempo sem “fazer nada”, aloquei esses seis meses para me dedicar apenas à ADAO. Desde que conseguimos o espaço até à sua constituição, estive presente todos os dias e era practicamente o meu trabalho. Numa fase inicial, estava mais focado na criação da estrutura mas depois começámos a passar muitas noites a pintar, o que fez com que pintasse mais telas e até fizesse algumas exposições. Ao mesmo tempo, todo o contacto que tive com outras pessoas da ADAO, fez-me ganhar novas técnicas e experimentar coisas novas. A ADAO foi uma boa experiência, foi muito desafiante. Mais tarde, deixei de fazer parte mas sinto que é um projecto que acabou por conseguir ter vida própria, que era esse o objectivo. Hoje é um polo artístico de referência e que continua vivo, oferecendo algo único na cidade através das mais variadas artes, desde a música à escultura.
Sentiste que o surgimento da ADAO levou mais pessoas a interessarem-se pela criação artística, porque viram que tinham ali um espaço que estimulava isso?
Sim, penso que ajudou em duas coisas. Trouxe novos autores que antes não existiam mas também conseguimos divulgar aqueles que já cá estavam e que não tinham voz. A ADAO foi constituída sem fins lucrativos e sem apoios. O objectivo sempre foi criar um espaço cultural de divulgação, produção, auxilio e formação. E conseguimos tocar nesses espectros todos. Especialmente em mostrar todos os artistas que já cá andavam mas que não tinham um espaço desta dimensão para mostrar o seu trabalho. Além disso, com os workshops e com a chegada de novos entusiastas, ganhamos ainda mais visibilidade. O tamanho da ADAO também aumentou, nós começamos com 10 ateliers, depois passámos para 20 e foi até aos 30. Tínhamos uma grande procura, muita gente queria estar naquele espaço criativo. Por isso, sim creio que o nascimento da ADAO veio potenciar e dar espaço a todas as pessoas.
O Art in Town surge a partir da ADAO ou foi algo independente?
O Art in Town surgiu numa noite em que estávamos a pintar e o Ricardo Tota sugeriu fazermos uma bienal de arte urbana. Uma vez que tínhamos a associação, podia ser uma boa ponte para isto. Decidimos propor a ideia à Câmara, depois de termos estruturado as nossas ideias para termos ali um projecto pensado. Acabámos por desenvolver o projecto na ADAO e quando o apresentamos à Câmara, eles dizem-nos que também já estavam a pensar em algo semelhante e que tinham interesse no projecto. Acabámos por alinhar as ideias e avançou. Numa fase inicial, tínhamos um orçamento muito pequeno mas conseguimos trazer muita gente, porque o Tota tinha os contactos e muitos dos artistas identificavam-se com o projecto. Mas a primeira edição correu muito bem e fomos conseguindo crescer, até que na quarta edição alargámos o espectro para não ser só pintura de mural, mas também escultura. Mas tem corrido muito bem, mesmo com a mudança de executivo, tem corrido bastante bem. Claro que gostávamos que o orçamento fosse maior, para tentar trazer artistas internacionais, por exemplo.
O Barreiro tem uma série de edifícios degradados ou até vandalizados com coisas escritas e pintadas sem critério. Achas que a arte urbana pode ajudar na sensibilização e educação do que é arte ou apenas sujar?
Penso que acabar com o vandalismo, os chamados tags, é practicamente impossível. O controlo social teria de ser gigantesco. E mesmo a sensibilização é difícil, porque o correcto para mim pode não ser para outro. Para mim, resume-se a uma questão de bom senso: danificar propriedade de outro sem autorização é vandalismo. E o objectivo da arte urbana é acrescentar valor, não é retirar. Enquanto um tag, por si, não acrescenta valor.
E parece que um espaço que foi intervencionado com arte urbana fica mais salvaguardado a isso. Eu digo isto porque, por exemplo, o mural do Vhils não tem um único tag, e há prédios que são acabados de construir e no dia seguinte está lá um.
Eu já sofri isso, com alguns edifícios que construímos. Até tínhamos um aqui no Barreiro Velho que esteve uns três anos sem um tag, o que parecia um milagre. Eu todos os dias passava por lá à hora de almoço e pensava: “é hoje.” E foram três anos sem ser vandalizado, até há uns dias. Mas sim, quando há valorização da intervenção, não vemos actos de vandalismo porque há ali um respeito pelo artista. Acho que isto é tudo um choque de egos. Um tag é um ego. É um acto altruísta, a mim não me faz sentido. Claro que se estiver contextualizado, como por exemplo aquilo que o Banksy faz, é diferente. Mas há um contexto e há uma ideia por trás.
Por já teres sofrido esses vandalismos, encontraste uma alternativa, que foi trabalhar com colagens em edifícios abandonados.
Sim, porque é algo que não fere o ambiente, é algo efémero. É um papel que é colado, que acabará por se desfazer ou é removido sem danificar. Na altura, comecei a fazer colagens de desenhos aleatórios no espaço urbano, apenas em edifícios abandonados. Porque aquela colagem não retira valor, e até pode acrescentar alguma beleza. Tudo isto acabou por ser o nascimento do “Isto podia ser assim”, porque muitos dos espaços onde eu colocava as colagens eram sítios que deviam ter uma reabilitação e uma vida nova. A primeira colagem que fiz dentro deste projecto foi na estação antiga, que era um desenho de um hostel e um café concerto, que ainda hoje acho que devia existir ali. Aquilo passou algum tempo no anonimato, tal como eu queria, mas o Vhils acabou por partilhar e alguém acabou por me identificar como o autor da colagem, porque eu não assino as minhas coisas. Aí, teve algum impacto, mas a minha ideia era só colocar as pessoas a pensar. Toda a minha arte urbana foi sempre feita com o objectivo de pôr as pessoas a pensar.
Alguma destas ideias viu a luz do dia? Conseguiste levar alguma avante?
Acho que não. Mas colocou as pessoas a pensar e a reflectir sobre aqueles espaços. Isso é muito importante. Eu lembro-me que quando mostrava as colagens aos meus amigos, ficávamos ali imenso tempo a debater aquilo. Eles davam novas ideias e isso é que é saudável. Ter um grande espectro de opiniões e ideias. É engraçado que nunca rasgaram nenhuma colagem, curiosamente. E acabaram quase todas por desaparecer, o que é bom. O tempo tratou delas.
Nota-se que tens um grande apreço pela arte efémera.
Sim, as pessoas quando criam uma peça de arte, às vezes ficam agarradas a ela durante muito tempo. Um artista que cria uma música com 18 anos, chega aos 30 e olha de maneira diferente para ela.
“Gosto de coisas efémeras. As coisas acabam por desaparecer, não porque as vou destruir mas porque vão naturalmente deixar de existir.”
Voltando à questão dos tags, vês algumas medidas que pudessem ser implementadas para reduzir a vandalização?
Acho que se podiam criar espaços onde as pessoas pudessem pintar livremente. Espaços com esse mesmo propósito. Espaços legais e de acesso público, com regras, claro. Por exemplo, um artista ter um espaço para pintar e essa peça fica ali durante seis meses, até ser apagada e vir outro. Algo como fizeram com o muro de Berlim. Isto ia criar um espaço comum onde até podia haver partilha de conhecimento e troca de ideias entre os artistas. Acho uma óptima ideia, criar uma parede legal e disponível. E também a presença da polícia. Se a polícia andar mais a pé, temos sempre aquela sensação de que ao virar da esquina estará alguém a ver. Em urbanismo aprendemos que a segurança é feita pela quantidade de pessoas que anda na rua, com o sentimento de presença da polícia, que tem que andar a pé. Isto reduzia drasticamente os actos de vandalismo e até de outros delitos.
Voltando aos projectos, e sendo que já não estás na ADAO, o que tens agora em cima da mesa?
Eu quando me afastei da ADAO foi mais no sentido de dar oportunidade a outros. Foram oito anos e creio que era altura de dar lugar a outros. Depois, tentei focar-me mais na arquitectura, que é a minha outra grande paixão. Até porque a arquitectura acaba por ser uma ferramenta para mudar algo. Portanto tento sempre ligar o lado artístico com a arquitectura. Claro que não é sempre possível. Mas nunca deixo cair este lado mais artístico. Eu desenho sempre os meus projectos à mão. Tive um projecto que até transformei em quadro. Mas sim, neste momento estou 100% focado na arquitectura. Continuo com o Art in Town, claro, mas é um projecto pontual e que não me rouba tempo diário. E continuo também com o “Isto podia ser assim”. Mas não é certo que fique só na arquitectura o resto da vida, porque o meu lado artístico não vai deixar de existir.
“A arte, em mim, é uma tentativa de resolver problemas ou introduzir novas ideias. E depois só muda o meio, seja na pintura ou na arquitectura.”
O Barreiro tem agora uma série de novos empreendimentos a serem construídos, alguns de grande dimensão. Como vês a chegada destes edifícios ao ecossistema urbanístico do Barreiro?
Eu vejo de forma positiva. Especialmente no centro do Barreiro é essencial. Até porque o Barreiro tem uma série de bolhas, espaços vazios, que nunca foram infraestruturados. E isso faz com que a cidade seja muito extensa, requerendo mais estradas, áreas de esgotos, lixo, iluminação, e torna a situação cada vez mais insustentável. Ver estes espaços vazios, que a cidade tinha, a serem preenchidos, acho que é uma mais valia. Quer pela questão económica, quer pelo uso do espaço e, acima de tudo, pelo aumento da população. O Barreiro tem practicamente o mesmo número de habitantes que Aveiro, que tem uma capacidade de resposta completamente diferente às necessidades da população. Tem um comércio mais ativo, mais emprego dentro da cidade. Uma qualidade de vida que aqui só temos em certas partes. E isto tem muito que ver com esta gestão do próprio território. Por isso, acho importante a construção destes novos empreendimentos, e nem estou a falar da parte arquitectónica, que isso já é uma questão de gosto pessoal. Além disso, agrada-me bastante que alguns deles estejam no centro do Barreiro. Por exemplo, o Fórum vai ganhar uma nova oportunidade de vida. Vejo tudo isto com bons olhos.
Achas que o Barreiro tem potencial turístico?
Acho que sim. O Barreiro sofre pelas comunicações. Mas a nível do turismo, isso não é um problema. Quem viaja não se importa de andar de transportes públicos, como o barco. A questão da viagem de barco pode ser debatida, porque quando fizemos a transição para estes barcos, passou a ser proibido viajar no exterior do barco, o que tornou a viagem menos apelativa. Mas, se calhar, era importante voltar a ter esta opção em cima da mesa, seria uma mais-valia, tornava a viagem bem mais interessante. Mas, acima de tudo, é uma cidade ainda por explorar, e o aumento da oferta cultural é determinante para esse aumento turístico. Acho que este aumento de população também vai proporcionar isso. Há mais pessoas, tem de haver mais oferta. E acho que, provavelmente, vão ser criadas novas associações, que poderão contribuir de outra maneira. Por exemplo, depois da ADAO, surgiu a PADA. Foi uma mais-valia para o Barreiro. Eles fazem residências de estudantes internacionais e colocam o nome do Barreiro pelo mundo fora. Surgiu, aí, uma nova oferta cultural na cidade.
É uma questão de sabermos vender-nos melhor.
Totalmente. Precisamos de saber expor-nos melhor. A cultura tem tendência a surgir mais. As pessoas procuram isso. O que é que eu faço terça-feira ou quarta-feira ao final do dia? Qual a oferta cultural que a cidade me dá? Se calhar um dia posso ir correr mas no dia seguinte quero fazer algo diferente. Aliado a isto, acho que a própria Câmara deve promover ainda mais eventos que possibilitem isso. Gostaria muito, por exemplo, que fizessem um concerto no anfiteatro do Polis, numa jangada no meio da caldeira. Era algo épico.
Portanto, vês com bons olhos o futuro do Barreiro.
Claro que sim. Com o aumento da população e mais habitação, irá surgir mais oferta. E é também muito importante que as pessoas que cá estão, continuem a querer cá viver. Ao início, é difícil convencer pessoas a vir viver para o Barreiro. Mas depois torna-se fácil, porque as pessoas não estão numa cidade apenas pelo sítio mas por quem lá habita. Por isso é importante valorizarmos as pessoas. Eu acho que a paixão do Barreiro são as pessoas, não a cidade em si. Mas voltando ao espaço cultural: quantos museus tem o Barreiro? Quantos é que estão abertos a horas que eu possa ir? Se calhar era importante fazer um estudo do consumo cultural no Barreiro. Perceber a que horas é que as pessoas estão a trabalhar, ver em que dias e horas visitaram um museu, por exemplo. E consoante isso, ter horários que façam sentido com a disponibilidade da população. Se calhar fazia mais sentido estar fechado de manhã e aberto à noite, por exemplo. Mas o futuro do Barreiro tem de passar pela cultura, sem dúvida. Não só a cultura do presente e do futuro mas também do passado. A história da cidade está cheia de cultura. Os melhores vendedores de uma cidade são aqueles que cá vivem, que a conhecem.