Jorge Moniz: “Há uma grande tradição de jazz no Barreiro”

Quando falamos de música jazz no Barreiro, é praticamente obrigatório mencionar o nome de  Jorge Moniz. Fundador da Escola de Jazz do Barreiro e diretor artístico do festival “Jazz no Parque”, o músico e compositor apanhou o Último Barco para nos contar o seu percurso na música nestas últimas décadas.

Como foi a tua infância no Barreiro?

Olha posso dizer-te que me sinto um privilegiado. Brincava na rua e tinha condições do ponto de vista desportivo e artístico incríveis. Acho que ter crescido aqui no Barreiro não me cortou o acesso a nada. Eventualmente terá limitado o acesso ao ensino artístico num nível mais elevado, mas não sinto que isso me tenha castrado em termos de progressão de carreira. Mas também comecei a estudar música tarde.

O que é que é tarde?

Tarde é quando entrei no ISEL, tinha 18 anos. Isso já é tarde. Já tinha começado a estudar piano antes, com duas professoras particulares.

Mas o prazer e interesse pela música só surgiu mais nessa altura ou já existia?

Não, surgiu muito antes. E isso talvez me tenha proporcionado uma adolescência nas bandas de garagem bastante saudável. Se calhar se tivesse começado a estudar música a sério antes, não tinha feito algumas coisas que fiz que me deram imenso gozo, no período pós-punk e indie, das quais me orgulho imenso. Coisas que ainda vivo hoje, através da convivência com amigos.

“O meu passado continua no presente, e isso é saudável”

Porque decidiste ir estudar música, numa ótica mais séria, aos 18 anos? Já era com uma visão de viver da música?

Eu acho que nunca pensei nisso de forma muito séria. Acho que andei a adiar. Através daquela mentalidade, algo paternal, de que deves ter um curso superior que te dê alguma segurança. E, por isso, andei a adiar estudar música a sério. Na altura em que me apanhei mais em Lisboa, inscrevi-me na Academia dos Amadores de Música em piano e no Hot Club em bateria, tudo ao mesmo tempo, algo que faz alguma confusão a muitas pessoas. Pus, como se diz em linguagem futebolística, a carne toda no assador.

Conseguias coordenar tudo isto? Não era muito exigente?

Era, por isso é que só estive seis meses no ISEL. Acho que só fiz Desenho Técnico, foi a única cadeira que fiz. Era evidente que não me podia continuar a enganar. Depois com alguma facilidade, confesso, fiz exames de acumulação no Conservatório, ou seja, fiz os oito graus de formação musical em três, fazendo exames como externo.

Porque já tinhas conhecimento de algumas coisas?

Tinha facilidade, no que toca à formação musical. No instrumento era mais difícil fazer essa progressão tão rápida. Lembro-me que na formação e composição musical, galguei vários anos e quando estava no sétimo grau de piano, que coincidiu com uma altura em que a minha mãe adoeceu gravemente, e acabou por falecer, fiz exames para entrar na licenciatura em composição na Escola Superior de Música e entrei. Ou seja, não conclui o oitavo grau, que era o último, e fiquei apenas na Escola Superior de Música. Também já não estava no Hot Club, já tocava em bandas.

 Depois continuaste o ensino académico, até ao Doutoramento.

Sim, sempre em áreas diferentes. Tudo coisas que me interessa explorar. A questão da etnomusicologia com o cante alentejano, que foi para o mestrado. E depois a questão das bandas-sonoras de cinema, que era algo que eu tive sempre pendurado, que até acaba por ser um tema que exploro neste último disco e que usei como tema para o doutoramento.

Atualmente, estás ligado ao ensino como professor.

Eu já dou aulas há muito tempo no Conservatório de Setúbal. Entretanto tinha ajudado a criar a Escola de Jazz do Barreiro, também me convidaram para dar aulas no Hot Club, foi criada a licenciatura em jazz na Universidade Lusíada, em 2009, e também me convidaram para fazer parte do corpo docente inicial, onde ainda estou.

Lecionar é uma consequência do teu conhecimento na área ou é algo que gostas genuinamente de fazer?

É consequência do conhecimento, não o posso negar, mas é uma consequência da necessidade de pagar contas.

Se tivesses condições financeiras, e não necessitando de dar aulas, é algo que não farias.

Quanto muito, ficava apenas numa escola. Que também, neste momento, pouco mais estou. Tenho o horário praticamente completo na universidade e vou um dia a Setúbal, ao Conservatório. No Hot Club, estou mais para continuar ligado à instituição.

Falaste da Escola de Jazz do Barreiro, como surgiu a sua criação?

A partir do momento em que existia a ideia e que esta foi apresentada ao vereador que acabou por levar isto avante, foi bastante rápido. Foram três meses. O problema foi o antes. Eu e o Batata, que faleceu há pouco tempo, já andávamos com essa na manga há muito tempo. De uma ou de outra maneira, estávamos ligados à banda municipal e como fui bolseiro daquelas bolsas Fernando Lopes Graça, uma das contrapartidas, era ter que pertencer à banda. Relacionei-me com o Batata, que era um grande amigo meu, e tínhamos essa ideia, de criar uma Escola de Jazz no Barreiro. Ambos gostávamos muito de jazz e não conseguíamos falar de jazz com muita gente daqui. Então andei a batalhar, com vários vereadores. Apresentei a ideia à Carla Marina, mas dá-me a sensação que bateu na parede e voltou para trás, depois voltei a falar no assunto ao Luís de Carvalho, e quando estava numa reunião com ele, o Batata estava por perto e o Luís chamou-o. E ele perguntou-nos, onde é que queríamos fazer a escola. Nós sabíamos que a Cooperativa dos Corticeiros estava vazia. Aquilo antigamente tinha supermercado, uma adega e nem sei se teria algo mais na altura. Mas foi definhando e estava praticamente vazio. Decidimos então marcar um encontro com a direção da Cooperativa para ver se estavam recetivos à ideia. E assim se fez. A partir daí começaram a haver reuniões entre a Cooperativa e a Câmara Municipal, onde estava o Batata, e em três meses a escola abriu. Em Janeiro abrimos. Abriu com a direção pedagógica do José Eduardo, contrabaixista e fundador do Hot Club, que já tinha trabalhado comigo e com o Batata.

E adesão foi boa?

Foi ótima. Abriram-se candidaturas para uma turma e apareceram cerca de 30 candidatos. Na altura ficámos todos satisfeitos. Depois foi crescendo, criou-se um plano de curso, com várias turmas e anos. É um pouco o que estou agora a fazer no Conservatório de Setúbal. É uma cidade com alguma dimensão mas que tem andado ali a marinar, com muitos projetos em águas de bacalhau. Estamos a tentar criar lá uma escola de jazz. Eu já não estou aqui na Escola de Jazz do Barreiro, por litígios. Na verdade, neste momento, no Barreiro, para além de ter a minha casa e a minha família, a única coisa que tenho a nível profissional é a direção artística do festival Jazz no Parque.

A ideia desse festival veio de ti?

A ideia foi deste novo executivo da Câmara. Recebi um telefonema da Lurdes Lopes, da Cultura, a convidar-me para assumir o projeto, que tenho todo o gosto em fazer e dá-me um enorme gozo. Mas era uma ambição deste executivo, não só pela tradição de jazz que aqui existe, como pelas escolas que temos, mas também porque nos anos 50, e isto era algo que o meu pai me contava, dançava-se jazz aqui nos bailes. Portanto há uma grande tradição de jazz  no Barreiro.

Como tem corrido?

Tem corrido bem, apesar da chapada da pandemia. Não está fácil, a conjuntura não está fácil. Eu já estou a notar que, para a edição de 2023, os orçamentos das bandas estão mais altos. Estou a ter mais dificuldade para esta edição do que para as anteriores. O ano passado correu bem, e eu sei que o festival tem um conceito diferente. Eu leio bastante o que a imprensa escreve, como um jazz.pt, e o que me chateia as vezes à que num festival que dura três dias, vêm apenas ao primeiro e depois desbastam. Chateia-me um bocado isso. Se calhar para fazer uma crítica mais séria e real, devia vir aos três dias. Mas pronto, eu percebo as críticas, o festival tem um conceito, que é o que a Câmara quer assumir, que é um festival gratuito num parque. Ou seja, tudo podes ter um Marc Copland ou um Jakob Bro a tocar com um grupo de pessoas a fazer um piquenique à frente. Para quem está habituado a ir a um Jazz em Agosto ou à Culturgest, se calhar é um bocado estranho. Mas é o que é, é o que se quer assumir. Se calhar também faz como que certos públicos, que não estão habituados a ouvir jazz, comecem a ouvir e depois até vão a outro sítio já com um conhecimento diferente.

Cartaz Jazz no Parque 2022

Começaste a ouvir jazz muito cedo?

Lembro-me que comecei aos 13 anos. Foi até antes de começar nas bandas de garagem. Uma vez estava a vir de férias do Algarve e fui à Universal comprar um vinil do Sexteto de Jazz de Lisboa, que entretanto veio aqui aos festival há três anos. Havia uma coisa nos músicos de jazz que era aquele virtuosismo, e isso cativava-me. Eu se calhar queria ser músico na altura, apesar de ainda não pensar muito nisso, mas gostava de ver o desempenho desses músicos ao vivo, como o Mário Laginha ou o Mário Barreiros. Gostava de ver tocar bem. Aquele domínio do instrumento, atraía-me, mais até do que hoje. Hoje penso mais em música e menos em técnica.

E quando tocavas nas bandas de garagem, qual era o género?

Eu apanhei o movimento da música moderna portuguesa, que eram os Heróis do Mar, Pop Del’ Arte, Rádio Macau, Sétima Legião, os Xutos em grande. Essas bandas todas. Era muito comum haver concursos de música moderna, e eu tocava numa banda chamada Soberano Veste Chanel, e fizemos alguns concursos. Fomos a Coimbra, a Sines, onde ficámos em segundo, e curiosamente a banda que ficou em primeiro foi os Rocócó, que também eram do Barreiro. O júri era o João Peste, dos Pop Del’ Arte, o Alex, dos Rádio Macau. Ou seja, o júri eram as referências da altura. Eu acho que o que nos prejudicou um bocadinho foi o facto de, apesar de estarmos perto de Lisboa, não estarmos em Lisboa.

“Na música é muito importante com quem tu bebes copos. E nós não bebíamos copos no Bairro Alto, bebíamos copos na noite do Barreiro, que era muito boa nessa altura”

Hoje em dia, tem surpresas, como é o caso aqui da Locomotiva ou da ADAO, mas na altura, aqui, havia muita coisa. Tu andavas no Barreiro velho e aquilo era uma azafama. Era inacreditável. Quem for lá hoje à noite, e eu moro lá, não tem nada a ver. É outro sítio.

Achas que esse desaparecimento de “alguma noite” fez desaparecer alguns movimentos artísticos?

Em termos de quantidade, não tenho dúvidas nenhumas. Se bem que ainda há coisas muito boas. E acho que algumas delas são ainda o resquício desse tempo. Mas o Barreiro em termos económicos caiu bastante, e isso arrastou tudo. Ou seja,  o que temos hoje, ou que não temos, é consequência de toda esse declínio económico da cidade. Fecharam muitos dos sítios que existiam na altura. Mas não só. Hoje em dia, as redes sociais têm uma grande influencia na forma como as pessoas se relacionam, convivem e socializem. Eu acho que é inevitável que haja menos coisas a acontecer. No Barreiro há menos coisas, mas algumas dessas ainda mantêm esse espírito da altura, e com bastante qualidade. A Locomotiva e a ADAO são dois exemplos disso. Eu quando vou à ADAO, sinto que estou no Barreiro. E sinto que o Barreiro é diferente da maior parte dos sítios. Sempre achei disso.

Em termos de ambiente? Da maneira como as pessoas se relacionam?

Sim, e no tipo de projetos que surgem, no tipo de cultura que existe. Em termos de urbanidade, em relação a outras cidades, como Setúbal, noto uma grande diferença. O Barreiro está mais perto de Lisboa em determinados aspetos, do que Setúbal. Embora para Setúbal não haja a barreira psicológica do rio, que é só mesmo isso, uma barreira psicológica. Mas noto que o Barreiro continua a ser uma cidade muito urbana em certos aspetos. O OUT.FEST, por exemplo, é uma prova disso. Tudo o que existe é fruto dessa necessidade de criar. É um espírito próprio aqui do Barreiro. Mas que pode ter tendência a desaparecer. As gerações hoje em dia e, se calhar, a tua é uma das últimas, ainda têm alguma ligação com esse passado industrial, com um determinado tipo de mentalidade. Se calhar, com toda a multiculturalidade que existe no Barreiro, e com todas as mudanças que a cidade sofreu, esse espírito pode perder-se.

Porque as gerações mais novas podem não ser espicaçadas ou despertadas para essa criação?

Não viveram determinadas coisas, que nós vivemos. Nem sabem o que é. É muito difícil sentir e perceber uma coisa que não se viveu. Faz-me lembrar quando estive a estudar o cante alentejano, para o Mestrado, em que ia a Cuba, do Alentejo, com muita frequência, e era difícil pores um coro de pessoal novo a cantar os temas da agricultura, da fome e das dificuldades económicas. Um jovem estar a cantar isso não é o mesmo que alguém que viveu isso na pele. Canta, mas não viveu, não sentiu. Enquanto que se for o jovem que tem o avô ou o pai que viveu isso, a cantar, talvez ainda consiga transmitir esse estado de espírito. Agora, quem não tiver essa ligação, já há muito coisa que se vai perder. Imagina, um casal que tenha imigrado para França nos anos 60. Se calhar os bisnetos, que já nasceram em França, e que nem vêm a Portugal, como é que vão sentir o espírito português? É uma cadeia que tem tendência a interromper-se.

“Mas enquanto existir uma ADAO, uma Locomotiva ou um OUT.FEST, esse espírito barreirense vai existindo”

Falaste do cante alentejano, na tua música tens referências ou inspirações que venhas buscar ao Barreiro ou às tuas vivências?

Acaba por estar sempre presente. Basta olhares para a capa deste álbum, que é do Chris Bigg, fazias capas para a 4AD. Fez capas dos Pixies, por exemplo. E isto é um universo com que eu vivi. Porque é que fui buscá-lo a ele e não a outro? Até me ficou mais caro, mas tenho essas referências que quero manter. Eu tento, de uma maneira se calhar inconsciente, fazer com que o meu presente ou futuro não se dissocie do passado. Fazer um caminho em conjunto. Vou descobrindo coisas novas, que gosto que se associem com antigas.

O facto de teres estudado bateria e piano ao mesmo tempo, em escolas diferentes, vem no seguimento de teres vários gostos dentro do mundo da música?

Sim, pode ser uma das razões. Eu sou uma pessoa inquieta. Tenho bicho carpinteiro. Não consigo estar só numa coisa, sou assim no meu dia a dia. Nunca estou muito tempo no mesmo sítio, gosto de experienciar várias coisas. E isso reflete-se na música. É uma maneira de estar.

Pegando aqui neste último álbum, que tem essa forte influência cinematográfica, sempre foste um apreciador de cinema?

Eu vou muito ao cinema. Até cinema mais de arquivo. Sou, como diz um amigo meu da Antena 2, um rato da Cinemateca. Se me fizeres perguntas de cinema atual, nem sei responder, sinceramente.

Mas porque não te interessa?

Não me interessa o cinema dos efeitos especiais, o cinema comercial. O chamado cinema pipoca. Mas não tenho problemas nenhuns com pipocas, nem com esse tipo de cinema, não sou preconceituoso. Simplesmente não me interessa. Eu tanto vou à Cinemateca ver um filme do Godard ou do Truffaut como vou ver mostras documentais de filmes publicitários dos anos 60 em Portugal. Depois vou absorvendo algumas coisas que me interessam, e isso vai-se refletindo na música. Por exemplo, eu tenho uma grande referência que era o Komeda, um compositor polaco, que trabalhou muito tempo com o Polanski, nas primeiras longas-metragens, como o “Faca na Água”, “Semente do Diabo” ou o “Por Favor, Não me Morda o Pescoço”, e há uma sonoridade que me interessa bastante, que tem um clarinete baixo, que acho que transparece um bocadinho aqui neste disco. Ou seja, se me perguntares se eu quis fazer o que ele faz, não. Mas inconscientemente, a referência está lá. Vou trabalhando com sonoridades que me são familiares, e as vezes as coisas batem certo. É o que está neste disco.

Tens algum projeto na calha?

Quero dar continuidade a este projeto. Não chamar o projeto do Jorge Moniz, mas chamar Cinematheque. A ideia é os próximos álbuns saírem sempre como Cinematheque, mais o título do respetivo álbum. Depois é continuar os projetos que tenho como baterista. Gravei agora com a Beatriz Nunes um disco que há de sair em breve e tenho um trio de jazz que é o Indra. Depois tenho um projeto meio eletrónico, o The Analog Music Project. Já estivemos aqui na ADAO, inclusivamente. Além disso, quando surge um convite ou outro para uma banda-sonora, também faço. Por exemplo, o ano passado estive na Suécia a fazer uma residência artística em que estive a compor para uma peça de teatro. Estive lá uma semana a trabalhar com um grupo de Malmo, e no seguimento disso surgiu o convite para fazer a banda sonora para um filme norueguês, que está na montagem final. Mas pronto, no fundo é isto que tenho andado a fazer.

Fotografia: Dulce Lázaro

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