Depois de um primeiro momento do OUT.FEST em junho, onde assistimos a uma variedade sonora de grande qualidade, foi a vez do festival voltar ao seu mês de eleição. De 4 a 9 de Outubro, o Barreiro recebeu o segundo momento deste festival, que contou com 16 momentos, espalhados por vários recintos na cidade.
Por impossibilidade dos autores, houve alguns concertos e conversas onde não foi possível marcar presença, pelo que vamos apenas abordar o que verdadeiramente vimos e sentimos.
As hostes foram inaguradas no dia 4, com uma interessante conversa com João Pais Filipe e Manongo Mujica, que tocariam no dia seguinte. Foi, acima de tudo, uma reflexão sobre o processo de criação e de como o artista não é mais do que uma extensão da arte que practica.
À noite, foi tempo de rumar ao Museu Industrial para ouvir o primeiro de dois momentos de Éliane Radigue. Este primeiro foi “Kyema”, que foi magistralmente controlado por Caroline Profanter. A escolha do local foi perfeita e a viagem fez-se naturalmente durante mais de uma hora. Apenas foi necessário fechar os olhos e irmos pela noite dentro.
No dia 5 seguiu-se então a apresentação da dupla João Pais Filipe e Manongo Mujica, no Parque Paz & Amizade, local já utilizado no primeiro momento do festival e um dos meus favoritos. De tudo o que vi neste segundo momento, este foi, para mim, o mais mágico. Foi uma viagem multinstrumental por vários mundos e locais. São nítidas as referências, influências e vivências que estes dois artistas têm e a forma como conseguem executar e transpor essa vida para estes instrumentos é sublime. Foi daqueles concertos que podiam durar horas e horas que não davamos pelo tempo passar. Estive o tempo todo colado e quase a sentir que fazia parte de toda aquela atmosfera sonora.
Com o cair da noite, rumámos até á Igreja de Santa Maria para o segundo concerto de apresentação de peças de Éliane Radigue. Desta vez, o comando das operações sonoras esteve a cargo de Julia Eckhardt e Enrico Malatesta, que apresentaram ‘Occam IV’ (solo de viola por Eckhardt), ‘Occam XXVI’ (solo de percussão por Malatesta) e, em estreia absoluta, ‘Occam River XXV’ para um duo viola e percussão. Mais uma vez, foi um momento mágico e transcendental onde a escolha do local influenciou, e muito, a audição destes temas.
A antepenúltima noite deste OUT.FEST foi a terceira de acesso gratuito mediante reserva e a afluência revelou-se à entrada do Auditório da Biblioteca Municipal do Barreiro. A expectativa para assistir ao vivo o ambicioso “Gaita Contra Computador”, trabalho lançado no final do ano passado por Vasco Alves, traduziu-se numa sala bem preenchida. Ainda que o seu percurso tenha passado discretamente por outras fontes e metodologias, foi mesmo com recurso à gaita de foles que desafiou o processamento digital de frequências noise. Um duelo improvável entre o sopro flutuante da gaita e a emergência intensa do noise, com recurso à ressonância de frascos para frequências mais inertes, revelou momentos de alarme destemidos dignos de hipnose.
O primeiro momento da noite fez adivinhar que o segundo também não seria tão dado a ensaios tão tradicionais como um violino e um piano fariam antever. Pedro Tavares, que até já havia passado pelo OUT.FEST noutra edição às mãos dos Império Pacífico, sentou-se ao piano para iniciar uma sessão de descontrução cristalina. Um som quase apocalíptico, entre rasgos de luz e devaneios soturnos do violino de Adriana João, preencheu a paisagem sem carga conceptual delineada mas com um sentido apurado do mundo digital.
Ao final da tarde quente de sexta-feira, o Anfiteatro do Parque Paz & Amizade recebeu os ritmos de DJ Nigga Fox. Figura incontornável da Príncipe Discos e um dos responsáveis impulsionadores da música que pendula entre a sua Angola de origem e os subúrbios da Nova Lisboa. Do nome do seu mais recente registo pode-se dizer que tem “Cartas na Manga”, mas é nos seus live sets que se tem total certeza da capacidade visionária do seu som. Sem recorrer a batidas fáceis e inteiramente dançáveis, foi através de passagens de ruptura que se atingiram os maiores picos de intensidade.
Já pelas 21h30 e no interior do Auditório Municipal Augusto Cabrita, tecto de vários momentos do OUT.FEST ao longo dos anos, foi promovida a estreia nacional de Jessica Ekomane, artista francesa e residente em Berlim. Activa no universo da instalação e da performance em sistemas de som quadrifónicos, Jessica revelou através do seu set a sua noção de espacialização do som e da percepção física de imersão sonora. Foi uma espécie de minimalismo palpitante, com pinceladas rítmicas a ganharem força a cada minuto e a darem som a cada movimento de luz apontado ao palco.
Um dos momentos mais aguardados deste OUT.FEST foi a subida ao palco de Bruno Silva, nome histórico da música experimental portuguesa deste século. À semelhança do seu moniker Ondness, tem editado enquanto Serpente vários álbuns por prestigiados selos europeus e só nesta edição surge se estreou no festival sob este nome. Com a colaboração ao vivo do saxofonista Pedro Sousa e da contrabaixista Margarida Garcia, dois nomes fortes do jazz e da música improvisada nacional, foi a concepção de um movimento sinusoidal labiríntico que agarrou desde cedo. Uma entrada minuciosa, mas constantemente percussiva e hipnótica, cresceu para um monstro de free jazz xamânico com os minutos finais apoteóticos a desenhar tal Ouroboros diante de todos os que decidiram aplaudir, de pé e sem palavras, tamanha atrocidade.
Chegámos então ao último dia do festival. Ao início da tarde, “The Humm” de Sarnadas propôs uma duradoura e expansiva experiência de imersão. Luz e sombras deram lugar a harmonias e texturas, estendidas pelos colchões no salão d’Os Franceses ao longo de duas horas. A suspensão do tempo e perda de noção de espaço, evocado pela hipnose pausada a partir das 15 horas com direito a uma reprodução visual vistosa, foram as resoluções viáveis de quem se quis perder pelo drone do colosso de estreia díptico do portuense.
De volta ao Anfiteatro Paz & Amizade para fechar a tarde, foi com o escape aural de “Honest Labour” de Space Afrika que a música ecoou pelas árvores do parque. A dupla de Manchester, composta por Joshua Inyang e Joshua Reid, tem neste último registo uma transgressão ao som mais identificável com o dub e o techno e neste OUT.FEST deram-nos precisamente isso: a amplificação do lado mais poético e turvo da agitação citadina em vez das batidas urbanas.
O público de regresso ao AMAC e Gustavo Costa de regresso ao OUT.FEST, coube ao baterista e percussionista dar o pulso rítmico que terá faltado no final da tarde. O portuense, mentor da Sonoscopia e activo no tecido cultural da sua cidade, surgiu em palco para uma investida a solo para apresentar “Entropies and Mimetic Patterns”, um reflexo de anos de estudo e prática em torno das potencialidades rítmicas, sejam elas do batimento regular do instrumento ou da cadência dos padrões quotidianos.
A fechar esta 17ª edição do festival, os Still House Plants depressa provaram porque são uma das presenças mais intrigantes nas músicas incatalogáveis do Reino Unido. Jessica Hickie-Kallenbach, Finlay Clark e David Kennedy compõem um triângulo bastante cru de voz, guitarra e bateria, ancorado nas canções igualmente precisas e erráticas de “Fast Edit”, álbum editado no ano passado. As faixas amplamente alongadas, com a voz de Jessica a flutuar sobre as cordas penetrantes e a percussão narcótica, permitiram mesmo atingir vários picos de deslumbramento sobre a sensação de uma falsa insegurança criada pela hesitação do namoro entre uma guitarra e uma bateria.
Ficou assim terminada esta edição do OUT.FEST 2021, que foi dividida em dois momentos, ambos com uma oferta bastante diversificada e multidisciplinar. Resta-nos esperar para a próxima edição e que esta seja ainda melhor.
Texto: Gonçalo Cardoso e Nuno Bernardo